Não tenho perfil, não tenho idade, o telefone não toca, nada acontece

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Sueli Scremin. À esquerda, Hugo Santos e Ana Ribeiro fotos: RUI GAUDêNCIO

Fazem parte dos chamados desempregados de longa duração. Falta-lhes trabalho, um salário, dias preenchidos, auto-estima. Alguns andam "a comprimidos". Oito testemunhos de vários pontos do país

O centro de emprego é uma zona de desconforto e nas habituais filas junto aos balcões de atendimento encontra-se de tudo. Pessoas que acumulam entrevistas de trabalho que acabam invariavelmente com um "você não tem perfil". Outras que coleccionam "não-respostas de trabalho". Outras que enumeram ofensas. Rita Belo, 38 anos, é das que se sentem ofendidas. Porque lhe têm dito, uma e outra vez, que 38 já é de mais.

Depois de sucessivos contratos no sector da banca, encontrou uma empresa onde permaneceu quatro anos com a promessa de uma entrada definitiva no quadro. Mas, como tantos outros, acabou por ser apanhada por uma onda de redução de pessoal e convidada a sair. Foi há dois anos e meio. Não voltou a trabalhar. "Tenho um bom currículo, experiência profissional, sempre trabalhei. Choca-me que me digam, como têm dito, que com 38 anos sou demasiado velha. Na última entrevista disseram-me: "Mas olhe, não parece nada ter 38 anos, parece muito mais nova!"" Era suposto ser um elogio?

"Respondi que não é a aparência que põe comida no prato da minha filha. Estou cansada. Já me disseram que não tinha idade para trabalhar numa agência, ao balcão. Mas porquê?" Ficou de rastos. "Acho que nem olham para os currículos. Está lá a minha idade." À falta de melhor, podiam poupá-la a entrevistas que acabam com um "não tem idade".

Os "nãos"

Tecnicamente, considera-se que o "desempregado de longa duração" é alguém que está sem emprego há pelo menos um ano. Em Janeiro, 6,3% dos portugueses encaixavam na definição. A média na União Europeia é muito mais baixa: 3,9%.

A primeira imagem que se associa a esta condição é a de pessoas com longas carreiras que o desemprego apanhou já a caminho da reforma. Mas não é bem assim. Ou, pelo menos, não é só isso.

Hugo Santos, 24 anos, é a primeira pessoa que abordamos à saída de um centro de emprego em Lisboa. Ficou sem trabalho "no dia 17 de Março de 2011". Era electricista numa oficina que o dispensou; neste momento candidata-se a tudo o que aparece - até porque, entretanto, a namorada, Ana Ribeiro, com quem vive, também ficou desempregada. São um casal jovem, sorriem, os dois com os impressos na mão - o prazo do subsídio dele já expirou, no dia em que falou ao PÚBLICO foi candidatar-se a uma formação para técnico de frio. O sorriso, no entanto, não diz tudo sobre o que sentem. E ela acaba por explicar que "é confrangedor" isto de depender dos pais, outra vez. "Devíamos ser nós a ajudá-los, e não o contrário..."

Ele responde a anúncios de jornais e em sites na Internet. Electricista? Não. Empregado de armazém? Não. Empregado de balcão? Não. Qualquer coisa? "Perdi a conta às entrevistas a que fui. Umas cem. A resposta é sempre não." Ela, que está sem trabalho há menos tempo, está-se a habituar à mesma rotina. A mesma rotina que fará parte da vida de alguns dos 2500 membros do projecto desempregados.net - uma rede social na Internet criada há cerca de um ano por dois amigos.

Nesta plataforma, desempregados procuram colocação e empregadores anunciam propostas - na semana passada havia 345 ofertas online. E foi através dela que o PÚBLICO recebeu, nos últimos dias, muitos testemunhos de gente sem trabalho há mais de um ano. Como o de Abel Gonçalves, 55 anos, ex-escriturário no Algarve.

Perdeu o emprego na empresa de construção civil onde trabalhava havia quase três décadas. Recebeu uma indemnização, tem o subsídio de desemprego, mas em ano e meio nunca o centro de emprego o chamou para uma entrevista de trabalho e quanto às suas autopropostas... "As empresas não respondem ou se respondem é para dizer "não"", contou ao PÚBLICO, ao telefone.

Nos primeiros meses da sua vida nova realizou um sonho e escreveu um livro, que foi publicado. Era uma maneira de se ocupar. Agora não sabe o que fazer mais. E pouco sai de casa. "Respondo a anúncios. De 15 em 15 dias tenho que ir à junta de freguesia tratar de um papel. É uma das exigências... Com esta idade as expectativas de arranjar trabalho são fracas. É complicado. Nem sequer há muitos anúncios." Talvez se dedique ao voluntariado.

O estigma

Há outra ideia feita associada aos desempregados de longa duração. A de que, no fundo, "não querem trabalhar", resume Albertina Gomes, 52 anos.

Albertina trabalhou 19 anos numa fábrica de confecções, em Braga, como telefonista. Quando tentaram despedi-la, pôs o patrão em tribunal - e a Justiça acabou por lhe dar razão e decretar que tinha direito a uma indemnização. Enfim, nunca a recebeu porque a empresa faliu. Está desempregada desde 2007. "No início foi muito difícil. Percebi que para alguém como eu, sem saber falar inglês, a minha profissão já não existia. Ia levar os meus filhos à escola, voltava para casa e pensava: "Mas o que é que eu vou fazer agora?""

Fez cursos de formação e programas ocupacionais para desempregados, aprendeu espanhol, gerontologia, vendas, umas vezes com bolsas do Instituto do Emprego, outras vezes sem; inscreveu-se nas Novas Oportunidades para concluir o 12.º ano... entretanto, o subsídio de desemprego esgotou-se e os anos foram passando. "As pessoas perguntavam-me: "Há tantos anos sem trabalho?" Como quem diz que os desempregados, no fundo, não querem trabalhar." Foi difícil digerir: "Houve uma altura em que tive que tomar antidepressivos..."

Rita Belo ainda os toma. "Estou a comprimidos. Qualquer coisa me põe a chorar. Sempre julguei que ia chegar a esta idade e ia ter a minha vida, pagar o empréstimo da minha casa", diz.

Para além das dificuldades económicas, e do facto de ter passado a depender do marido para tudo, o desemprego trouxe-lhe outras angústias. "As pessoas olham-nos com aquele ar... dizemos "estou desempregada" e parece que fazem todas o mesmo gesto: põem os ombros para baixo e pensam "coitadinha"."

Está desanimada. "Não tenho perfil, não tenho idade, o telefone não toca, nada acontece." E parece estar um pouco só, também. Os convites para sair, dos amigos, foram diminuindo. E ela também não procura muito - para evitar gastar dinheiro.

A "exploração"

Albertina ultrapassou a depressão. Actualmente, está a fazer trabalho de escritório numa associação. Não sabe ainda se vai ser remunerada por ele. Está ocupada e isso parece ser o que mais interessa. E até dá consigo a pensar se deveria ter recusado aquele trabalho que alguém lhe propôs em tempos - ofereciam-lhe 350€ por mês, para um horário de oito horas por dia. Era 125 euros abaixo do salário mínimo nacional, mas era um trabalho... Na altura hesitou sujeitar-se a trabalhar por tão pouco.

Sueli Scremin, uma brasileira de 45 anos que trabalhava numa residência de idosos, também tem dúvidas sobre isto de quanto vale, afinal, o trabalho.

À porta do centro de emprego de Lisboa explica que estava farta de estar em casa e que fez saber que gostaria de ocupar uma parte do seu tempo até que um emprego surgisse - conta, com um livro que compila poemas do Fernando Pessoa por debaixo do braço. Integraram-na então num programa de inserção no mercado de trabalho. E o negócio é este: trabalha das nove às cinco, de segunda a sexta, no arquivo de uma conservatória de Lisboa e, para além dos 419€ de subsídio social de desemprego, recebe uma bolsa mensal de 83 euros, mais subsídio de alimentação e ajuda ao transporte. É "uma exploração", desabafa. Mas foi ela quem pediu para participar, acrescenta.

Há mais quem trabalhe por pouco. Ana Marques ("27 anos, uma casa, um companheiro, duas gatas, impostos, contas para pagar, avós idosos para cuidar") licenciou-se em Psicologia mas nunca trabalhou o tempo consecutivo suficiente para ter direito a subsídio caso o trabalho lhe faltasse. Há quatro anos que está inscrita num centro de emprego, na Amadora. À falta de propostas, vai arranjando coisas mais ou menos pontuais - call centers, lojas, cafés, mas também alguns projectos de investigação para universidades, no âmbito dos quais aplica testes psicológicos e faz tratamento de dados, trabalho pelo qual já chegou a receber 3€ à hora. Tudo a recibo verde. De seis em seis meses recebe um postal do centro de emprego em que lhe dizem qualquer coisa como: "Ainda não foi possível responder ao seu pedido."

Rosália Rodrigues, 49, de Santarém, ex-professora, ex-jornalista, ex-assessora de imprensa, já trabalhou numa loja de malhas a 2,30€ à hora, sem qualquer vínculo; deu aulas a recibo verde num instituto de explicações que fechou sem lhe "pagar um cêntimo"; tentou a sorte como mediadora imobiliária, onde pagou toda a formação e receberia à comissão, mas foi apanhada pela crise no sector. Neste momento, está com um contrato de dois meses a fazer promoção a um produto bancário. Contratos de dois meses é o habitual nessa área. Ao longo deste tempo, tem-se mantido quase sempre inscrita no centro de emprego, como estando à procura de trabalho.

"Considero-me uma desempregada de longa duração porque há oito anos que não tenho um rendimento fixo e um vínculo minimamente seguro", diz. Trabalho "e animação", contudo, não lhe têm faltado, acrescenta com ironia.

Quando em Março do ano passado Ana Moleiro, 33 anos, formada em Psicologia, foi informada de que o seu contrato não ia chegar ao fim, também não esperava o que viria a seguir. Vai enviando currículos (pela regras do subsídio de desemprego está obrigada a enviar pelo menos quatro por mês) e começa a coleccionar exemplos de "anúncios de emprego um bocado enganadores" - "Já me aconteceu pedirem um psicólogo, ir lá e ser uma empresa que precisava de alguém para o sector das vendas. Achavam que se tivesse conhecimentos de psicologia era melhor porque supostamente entraria melhor na cabeça das pessoas."

Tenta manter uma atitude positiva. Acha que em cada entrevista de emprego que corre mal (porque o salário é demasiado baixo, ou porque tão-pouco lhe querem dizer quanto lhe vão pagar) aprende mais alguma coisa. Já não está à procura de trabalho "especificamente em psicologia". Está disponível para trabalhar onde achar que pode ser útil. Mas reconhece que não tem muito tempo. "O subsídio acaba em Junho."

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