Gilberto Velho (1945-2012) Na selva das cidades, no Brasil como em Portugal

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Gilberto Velho nos jardins do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, instituição onde trabalhou durante décadasNa página ao lado, Copacabana vista do Leme, que foi sua casa e seu objecto de estudo Rui Gaudêncio

Drogas, prostitutas, funk, rap ou a vida como ela é num prédio de Copacabana: Gilberto Velho trouxe tudo isto para a antropologia e influenciou várias gerações de brasileiros e portugueses

No fim dos anos 1960, o antropólogo Gilberto Velho foi morar em Copacabana, num daqueles prédios de pequenos apartamentos que serviam as levas recém-chegadas à cidade. Copa, como lhe chamam os cariocas, foi a sua casa e o seu objecto de estudo durante dois anos, e isto resultou num livro chamado A Utopia Urbana, publicado em 1973. Para várias gerações de brasileiros e portugueses marcou a descoberta de que a antropologia podia ser também aquilo, a selva da cidade em vez do exótico da selva. E é assim, como um desbravador da vida urbana, e da autonomia dos indivíduos no meio da vida urbana, que várias gerações dos dois lados do Atlântico têm evocado Gilberto Velho desde a sua morte, dia 14, na sequência de um AVC, no Rio de Janeiro. Tinha 66 anos e sofria de problemas cardíacos.

Herdeiro dos investigadores americanos que se debruçaram sobre a cidade, não se limitou a transpor essa herança para o Brasil. Abriu a universidade a todos os campos possíveis. "A partir dele é que se estudaram prostitutas, militares, bailes funk, astrologia ou políticos", diz Karina Kuschnir, 44 anos, uma das suas mais próximas discípulas, e autora da fotografia que aqui publicamos, tirada nos jardins do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, instituição onde Gilberto Velho trabalhou durante décadas.

"Não só é o fundador da Antropologia Urbana no Brasil como é talvez a voz mais importante da Antropologia Urbana em língua portuguesa, o seu expoente máximo", resume Graça Índias Cordeiro, 51 anos, professora no ISCTE, em Lisboa. "Foi o fomentador de uma rede de relações entre Portugal e Brasil ao longo de várias gerações."

A tal ponto que Graça fala em orfandade, lembrando como Gilberto Velho dava aos amigos o melhor que tinha: "Uma inteligência brilhante, uma perspicácia e exigência penetrante, um sentido de humor implacável, uma sensibilidade muito fina e subtil feita de imensa sabedoria e experiência. Todos os que estávamos mais próximos dele nos sentimos verdadeiramente órfãos, neste momento."

Numa longa entrevista de vida conduzida por investigadores brasileiros e portugueses (http://cpdoc.fgv.br/cientistassociais/gilbertovelho), Gilberto Velho fala do avô paterno transmontano e da emoção que viveu ao avistar finalmente o castelo de Bragança. Isto para explicar a origem da sua relação com Portugal.

Cronista semanal do Globo, Hermano Vianna conta na sua última coluna como Velho "procurava o complexo onde menos se esperava", do prédio em Copa aos consumidores de droga da classe média. "Foi esse olhar atento para o não convencional que me levou a fazer antropologia", escreve Vianna, que se doutorou com uma tese sobre funk em 1986, quando o funk era uma aberração para a classe média brasileira. Velho ligava de manhã cedo a ver se os orientandos estavam a trabalhar. "Mas seu controlo era paradoxal: no lugar de buscar resultados previsíveis, a disciplina deveria produzir o inesperado." E acompanhou o então doutorando a bailes funk.

O inesperado também se aplicava aos jantares que Velho organizava, lembra Vianna, onde nunca estavam os convidados que ele dizia. Mas um dia prometeu investigadoras portuguesas de rap e Vianna conheceu mesmo investigadoras portuguesas de rap, conta no Globo.

Uma delas foi a antropóloga Teresa Fradique, 40 anos, e Gilberto Velho acabou por prefaciar a sua tese. "Deu aulas no mestrado que eu fazia e veio do Brasil para fazer a arguição da tese. Iniciou-se aí um diálogo interessantíssimo. Ele tinha uma visão muito aberta e criativa, fez as interpelações correctas. Tinha a capacidade de ver no espaço mais vasto e fragmentado os processos culturais que a antropologia aplica a territórios circunscritos e exóticos."

Teresa também recorda um controlo rigoroso dos orientandos. "O choque que tive quando tentei negociar o prazo de entrega de um artigo e ele foi peremptório! Fiquei espantadíssima. Mas assim que recebeu o artigo foi incrível na resposta. Era leonino no acompanhamento, na vontade que as pessoas cumprissem um programa para depois haver espaço para um debate mais profundo."

A antropóloga portuguesa Cristiana Bastos, que viveu no Rio de Janeiro e mantém laços fortes com investigadores brasileiros, recorda o "humor embutido" que encontrou em A Utopia Urbana, ao vaguear nas livrarias aí por 1980.

"O que li nessa altura ficou-me guardado e sai de vez em quando no modo como trabalho, como me atiro a coisas menos convencionais sem medo. Alguém me inspirou, deu o tom, e eu continuei a música. Anos mais tarde conheci-o em pessoa, quando fiz um estágio no Museu Nacional. Continuava criativo, estimulante, original, e ficámos muito amigos. Tinha uma relação muito interessante com os alunos e colegas, parecia que estava sempre a gozar mas ia instigando a que criássemos coisas novas, e levava-as a sério, publicava livros compilando capítulos de trabalhos dos alunos."

"Como professor era inigualável, tinha um carisma e uma capacidade de comunicação oral única", lembra Karina Kuschnir, que o conheceu quando era mestranda em 1991, e depois se tornou sua assistente. E como autor, os seus livros - além de A Utopia Urbana, por exemplo Desvio e Divergência, Individualismo e Cultura ou Nobres & Anjos, sobre a elite carioca consumidora de droga - contam várias edições, "são intensamente lidos".

Portugal "estava incluído no horizonte dele de forma natural", diz Karina. "Acho que ele não via isso compartimentado." O derradeiro exemplo é que o último trabalho de Gilberto Velho vai ter a sua primeira publicação no próximo número da revista Sociologia, Problemas e Práticas, editada pelo Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa.

"Foi ele que teve a iniciativa de escrever este artigo e propor a sua publicação, o que aceitámos, evidentemente, com o maior gosto", explica o sociólogo António Firmino da Costa. "O texto é sobre as empregadas domésticas no Brasil. Nele Gilberto Velho aborda, da maneira profundamente inteligente e sensível que caracteriza a sua obra, comportamentos humanos e relações sociais, interligando a vida das pessoas e as formas de sociedade. É um texto, ao mesmo tempo, muito pessoal e lucidamente analítico, mais um contributo especialíssimo do autor para o conhecimento do universo social em que vivemos, dos seus vários mundos e das pessoas que transitam neles e entre eles." Poderá ser lido "dentro em breve, logo que o processo de composição e impressão fique concluído".

Professor do Museu Nacional, onde trabalhou ao lado de Gilberto Velho, e vice-presidente da Associação Brasileira de Antropologia, Luiz Fernando Dias Duarte conhece bem o manuscrito. "Estava dirigido ao público português. E tratava de examinar uma dimensão muito interessante da relação entre patrões e empregados domésticos, o que permitia fazer um exame da relação de classes."

Quem conheça a sociedade brasileira sabe como essas relações são vividas de uma forma extra-hierarquizada que já não é comum na Europa. Mas Gilberto Velho vai além do aspecto clássico da dominação. "Ele usa a experiência com a sua empregada de várias décadas, a Dejanira, a quem ele chamava Deja. O artigo está dedicado a ela. Estava já aposentada e ele fala do que significou a perda da relação com ela. Todos nós [colegas de Gilberto no Rio] a conhecemos muito bem. Uma empregada doméstica tem um projecto de vida diferente do de um professor universitário, mas há espaço para uma mediação. Não se trata de dourar a pílula das relações mas de compreender a sua complexidade."

Tendo sido um dos primeiros professores de Luiz Duarte, Gilberto Velho influenciou as suas teses de mestrado e doutoramento, sobre classes populares. "Ele era mais um especialista em classes médias, mas tudo isto tinha a ver com a construção social da pessoa, a ideologia do individualismo. Depois fomos colegas 30 anos em salas vizinhas e ele estava muito presente na vida de todos os orientandos e amigos, um esteio constante nos problemas académicos, de família, de saúde."

Partilharam, por exemplo, a participação na reforma psiquiátrica brasileira. "Tratava-se de denunciar as formas autoritárias de lidar com o fenómeno da perturbação mental, de preservar a capacidade de acção dos sujeitos. A questão da autonomia, da liberdade, era muito importante para o Gilberto. Então temas como drogas, violência ou doença mental eram muito importantes para ele. A Antropologia Urbana é indissociável do Gilberto, mas a questão dos projectos de vida, da complexidade da vida social e das mediações são mais importantes que o facto dele ter criado uma área."

Num texto de homenagem escrito no dia a seguir à sua morte, a portuguesa Graça Cordeiro resumiu assim o legado de Gilberto Velho do ponto de vista de quem trabalhou com ele: "Aulas, seminários, conferências, lançamentos de livros, projectos de investigação, jantares, conversas, passeios, excursões; onde já não se sabia quem era o historiador, o sociólogo, o antropólogo, o arquitecto, num confortável e bem-humorado diálogo em que todos eram pares."

Ponte entre Portugal e Brasil será isto.

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