Álvaro, o geógrafo caça-fantasmas

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NELSON GARRIDO

Em Vida no Campo, segundo capítulo da viagem por um país em transformação, Álvaro Domingues chora "a perda, traumática, de uma ruralidade mitificada". Portugal, diz, continua a ser "inesperado".

A profissão parece fora de moda. Com o Google Earth na palma da mão, para que precisamos nós de um geógrafo que nos explique a paisagem que podemos ampliar com o deslizar de dois dedos? Álvaro Domingues, que, de câmara fotográfica a tiracolo, mostra que não se intimida com a mediação tecnológica, acredita no entanto que ainda pode ser útil, lançando-se numa verdadeira caça aos mitos, aos fantasmas conceptuais que nos arrumam a cabecinha em compartimentos estanques. Uma cidade é uma cidade, sabíamos nós antes de lermos A Rua da Estrada, e percebermos que, afinal, a cidade foi-se pela estrada nacional afora, criando aquilo a que Álvaro Domingues chama a "paisagem transgénica". Pois também achávamos que o campo era aquele sítio pobre, semi-abandonado e isolado do mundo, até ele vir agora, no segundo round da sua tetralogia, A Vida no Campo, pôr tudo isso em causa.

Acontecera no Oeste. Quando Álvaro Domingues explica à mulher do Sr. António Ramos que, naquela região a Norte de Lisboa, já deu de caras com umas estufas sem terra, em que as alfaces crescem apenas em contacto com água e nutrientes, a senhora, que acaba de interromper o trabalho para ouvir o geógrafo que o Ípsilon lhe plantou entre os bolbos, nem sabe o que lhe há-de responder. A hidroponia - poderemos chamar-lhe (agri) cultura? - é coisa ainda não testada por aqui. Para o Sr. António Ramos, 70 anos, o campo é "um campo, prontos". No caso, é mesmo um pedaço de terra na margem da rua da estrada, a EN 13, a Norte da Póvoa de Varzim. Parcela cedida por emigrantes que, em vez de silvas, há-de ter cebola. Para esvaziar o tempo e guarnecer a algibeira deste reformado de uma famosa indústria que até já se chamou Quintas & Quintas e está em vias de deslocalização.

Uns partem, outros transformam-se. Mesmo que da boca do Sr. António Ramos brotem os estereótipos do costume, o "isto não dá nada", como assinala o geógrafo. Naquele mesmo lugar, entre vivendas, espaços comerciais e híbridos de ambas as coisas, os antigos campos de masseira de A-Ver-o-Mar e vizinhança, herança do engenho beneditino, são engolidos, na paisagem, por milhares de estufas. E aqui dá jeito o Google Earth (espreitem já agora as coordenadas 41.4204N e 8.7697W e a área a Norte) para perceber no que se está a tornar o sítio e porque o escolheu Álvaro Domingues para conversar com o Ípsilon sobre o seu novíssimo livro, Vida no Campo. Obra escrita "para se perceber, entre a realidade e a ficção, como se ultrapassa o trauma da perda" de uma "ruralidade mitificada".

A voz ao caça-fantasmas: "Quando se fala de desruralização, as pessoas pensam na trilogia abandono, envelhecimento e desertificação. Têm uma visão negativa. Eu gosto de chamar a atenção para estes casos", vai explicando. E isto é um exemplo de desruralização? "O adjectivo rural só existia quando se conjugavam duas coisas, uma base económica assente na agricultura e uma cultura, a das comunidades fechadas sobre si. É a antítese do cosmopolitismo, o pré-moderno. E a gente vem a estes lugares e o que vê? Vê a agricultura high-tech, que já vai na segunda revolução: se a primeira era a do adubo e do tractor, a segunda é já da micro-mecanização e da biotecnologia", argumenta.

Aqui quase não sobra espaço para o mito do camponês, do lavrador pobre, mas honrado. "Esta é uma parcela do território português em que as hortícolas estão numa vertigem da tecnologia, muito expostas aos mecanismos de mercado que são tão globais como os financeiros. Esta agricultura só existe quando a cultura de quem produz se torna empresarial, e muda completamente". Ainda que convivendo, sem problemas, com o "passado". Basta sair da EN13 para entrar num emaranhado de pequenos campos, as masseiras, escavados abaixo do nível da estrada para proteger do vento as antigas culturas. À esquerda, duas ruínas de moinho. Para trás, painéis fotovoltaicos. À direita, a arqueologia, ainda viva, numa cepa de vinha de masseira. A toda a volta, estufas e mais estufas, uma cidade de plástico que, se for preciso, não dorme, porque até há quem ilumine as plantas à noite, nota Álvaro Domingues.

E se da noite se pode fazer dia... "Ao longo da minha carreira académica e no grupo de investigação a que pertenço, nós fomos acumulando conhecimento e, no mesmo grau, contradição, acerca das formas convencionais de olhar para o território: as dicotomias entre o rural e o urbano, o natural e o construído, o campo e a cidade. Eu às tantas disse: isto está tudo errado. Achei que estávamos a cair no alçapão de deixar de ver a realidade como ela é e a ficar viciados em conceitos pré-construídos, categorias, taxinomia, montagens teóricas e conceptuais", confessa o docente da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.

Um Portugal inesperado

Para escapar ao alçapão, Álvaro Domingues decidiu enveredar "por uma via mais radical", "expor-se às coisas como elas são". Daí ao conceito, emprestado da Biologia, de paisagem transgénica, já testado em A Rua da Estrada, foi um passo. "Se um coelho fluorescente não é um coelho nem uma alforreca, a paisagem transgénica é outra coisa, é uma composição. E nós devemos olhar para a paisagem assim, procurar conhecer-lhe o ADN, e não dizer que ela é urbana, é rural". Tal como lhe aconteceu pensar num lugarejo de Lamas de Mouro, interior do Parque da Peneda-Gerês, ao ouvir a "chinfrineira" de um transístor a nascer de uma árvore, verdadeiro espantalho electrónico. "Olhe já tentámos de tudo. As fitas das cassetes, os CD, os espelhos pendurados. Nada. Agora, isto sim... enquanto eles não se habituam", explicou-lhe, para seu espanto, uma mulher.

Habituemo-nos nós, ao método, o dele. Se o campo, como concede, é um arquétipo, um lugar idílico, imaginado, por qualquer um de nós, ou "um estado de espírito", Álvaro Domingues esforça-se por pô-lo em causa. Citando, profusamente os discursos legitimadores de uma certa ideia da ruralidade - que pode emanar dos versos populares de um Roberto Leal chorando a saudade da aldeia onde nasceu, ou na fina prosa de uma Agustina Bessa-Luís, por exemplo, como dantes emanavam do retrato da família portuguesa, de A Lição de Salazar. As vozes, muitas delas a raiar a heresia no protocolo académico, são convocadas para a confrontação. "Há coisas ficcionadas que estão no discurso político, nos media, no senso comum, e que não têm nada a ver com a realidade. Há uma dominante, ainda hoje, de uma estética pitoresca que vem do romantismo", avisa o investigador que, à semelhança do que fez em A Rua da Estrada, expõe muitas vezes a sua contra-argumentação com recurso à fotografia. Como se soubesse que o leitor, como Tomé, só vendo acreditará no país que está à sua frente: o país da roupa a secar debaixo do viaduto, o país onde a arquitectura Pritzker coabita com marquises (ver caixas).

Recusando "essa coisa de dizer "olha que feio"", interessa a Álvaro Domingues que percebamos "que, se as coisas existem, têm uma razão, e temos de a procurar". E o que ele nos esfrega na cara, olhos dentro, é o inesperado, afirmação de um Portugal a marimbar-se para as categorias - cidade/campo, rural/urbano, vernacular/exótico - e a plantar uma Avenida das Leiras num lugar de verde a perder de vista, sem uma casa. São imagens que lhe surgem. Outras é ele que as procura, de uma forma que às vezes assusta a sua companheira. "A minha Sílvia (Bereny) diz que só por milagre é que ainda não me estampei com o carro. Estou sempre a ver, seja o pormenor, sejam as coisas ao fundo. Se não for assim, tu olhas mas não vês".

Ele promete continuar a ver (a tetralogia prosseguirá com Volta a Portugal e Entre nós... de auto-estrada). E a pôr em causa aquilo que as coisas nos parecem.

Ver crítica de livros pág. 34 e segs.

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