A sombra contra a qual os Conservadores ainda lutam

Texto originalmente publicado no Ípsilon a 03-02-2012

Fotogaleria
Mary Evans, do Gender Institute da London School of Economics, chama-lhe anti-feminista, retrata-a como alguém que era "horrível para as colegas mulheres", mas nota o paradoxo: apesar de ter mostrado que "as mulheres têm o direito de estar na política e de ter tanto poder quanto os homens", "fê-lo sem estar consciente das implicações" DAN CHUNG/ REUTERS
Fotogaleria
Mary Evans, do Gender Institute da London School of Economics, chama-lhe anti-feminista, retrata-a como alguém que era "horrível para as colegas mulheres", mas nota o paradoxo: apesar de ter mostrado que "as mulheres têm o direito de estar na política e de ter tanto poder quanto os homens", "fê-lo sem estar consciente das implicações" DAN CHUNG/ REUTERS
Fotogaleria
Mary Evans, do Gender Institute da London School of Economics, chama-lhe anti-feminista, retrata-a como alguém que era "horrível para as colegas mulheres", mas nota o paradoxo: apesar de ter mostrado que "as mulheres têm o direito de estar na política e de ter tanto poder quanto os homens", "fê-lo sem estar consciente das implicações" DAN CHUNG/ REUTERS
Fotogaleria
Mary Evans, do Gender Institute da London School of Economics, chama-lhe anti-feminista, retrata-a como alguém que era "horrível para as colegas mulheres", mas nota o paradoxo: apesar de ter mostrado que "as mulheres têm o direito de estar na política e de ter tanto poder quanto os homens", "fê-lo sem estar consciente das implicações" DAN CHUNG/ REUTERS

Antifeminista, abriu espaço para as mulheres na política sem estar consciente disso. Fez menos do que o mito conta. Mas ainda é daquelas personagens "maiores do que a vida". Especialistas olham para o seu legado.

Mais de 20 anos depois de ter deixado Downing Street, Margaret Thatcher continua a provocar reacções contraditórias e disputas ideológicas. Os cerca de 11 anos à frente do Reino Unido (1979-1990) foram de tal forma marcantes que se tornou um "mito" e uma daquelas "figuras maiores do que a vida" que ainda "domina a política britânica", diz Andrew Gamble, director do departamento de Política e Estudos Internacionais da Universidade de Cambridge. "A memória dela é um facto político poderoso em si mesmo. Muito é baseado em mito, mas é um mito poderoso."

E em que é que se sente o seu legado no Reino Unido de hoje?

No Partido Conservador é incontornável, uma sombra contra a qual o actual primeiro-ministro ainda tem de combater, diz Gamble. Estabelece o padrão pelo qual "os conservadores têm sido julgados". Porquê? "Porque definiu os parâmetros do que é um verdadeiro conservador". "Mesmo David Cameron, que se tentou distanciar, vive na sombra de Thatcher". No fundo, Thatcher "ainda define o tom do debate político".

Mas há quem a lembre como alguém que "não conseguiu atingir todos os objectivos que queria", como Hilary Wainwright, directora da revista "Red Pepper" e directora de pesquisa do "New Politics Project" do Transnational Institute. Exemplo? O falhanço da privatização do serviço nacional de saúde. Mas uma coisa conseguiu: "A revolução neoliberal que ela iniciou influenciou o debate político britânico desde então."

Algumas das suas medidas mais emblemáticas continuam a ter efeitos na vida britânica, até porque, como diz Andrew Gamble, Thatcher definiu a "política económica do Reino Unido nos últimos 20 anos". Privilegiou o mercado livre nas suas políticas públicas, fez a desregulação do sector financeiro da City criando "as condições para o "boom" financeiro nos anos 1990" - e para o consequente reverso da medalha que foi a crise de 2008. Gamble responsabiliza Thatcher pela mudança da base da economia britânica para os serviços financeiros e pela destruição das indústrias de produção: algumas recuperaram produtividade, mas nunca as taxas de emprego. "Uma das consequências foi que uma enorme quantidade de gente precisou de apoios sociais e isso criou a cultura de dependência dos subsídios que perdura até hoje." Além disso, acrescenta, as suas políticas deixaram gerações no desemprego de longa duração ou em empregos precários e contribuíram para as desigualdades sociais que se começaram a acentuar a partir dos anos 1980, com o fosso entre ricos e pobres a alargar-se. É certo que estas são tendências mundiais, mas Thatcher facilitou o caminho da Grã Bretanha nessa direcção, levando ao que Gamble vê como o "desequilíbrio da economia britânica" - justamente, o facto de se ter virado para as finanças.

Mais importante é Thatcher não ter percebido o conceito de economia de mercado e as suas implicações, diz Mary Evans, do Gender Institute da London School of Economics. "Encarou a economia de mercado como se não fosse uma opção política mas algo inevitável. Mas se se retira a opção da política, então com que é que se fica?"

O modelo de mercado livre anglo-saxónico que Thatcher criou, distanciando-se da França e da Alemanha, foi uma das razões pela qual os britânicos "não olharam para a União Europeia como uma força de modernização", diz, por seu lado, Michael White, comentador político do "Guardian". "Tornou-se uma alternativa que durante um tempo parecia estar a funcionar" -até chegar o "crash" de 2008 e provar-se o contrário. Mesmo assim, algumas medidas foram bem-sucedidas e ajudaram a tornar o Reino Unido "mais competitivo".

Não há sociedade

Uma das frases mais citadas de Thatcher, que muitos dizem ter sido retirada do contexto, é aquela em que disse: "Não há essa coisa de sociedade, há indivíduos e famílias". Estávamos em 1987 e falava a um congresso do Partido Conservador, acrescentando: "Não há nada que o Governo possa fazer sem ser através das pessoas, e as pessoas têm de tomar conta delas próprias primeiro." Esta ideia é mais complexa do que Thatcher a apresentou, defende Mary Evans, porque na verdade "mina o estatuto do colectivo" e das "centenas de coisas que as pessoas fazem juntas". "A consequência deste argumento é que as pessoas pensam que o mundo "sou apenas eu e a minha família"." Isso abre portas ao individualismo que ainda hoje se reflecte na queda das diversas formas de participação política, sublinha. "E, apesar de encorajar o individualismo, a política dela fez com que as pessoas se sentissem com menos poder - porque essa ideia de ser "só eu e a minha família" retira poder."

Por trás desta declaração de Thatcher estava a ideia do afastamento da intervenção estatal, não apenas na economia mas também na vida dos cidadãos. Com ela acabou o consenso sobre o Estado social, lembra Rob Berkeley, do "think tank" para a igualdade racial Runnymede Trust. John Solomos, sociólogo e director do Centro de Raça, Etnia e Migrações da City University London, refere o papel de Thatcher na transferência da política para a iniciativa privada, criando uma sociedade com menos apoio do Estado.

Há outra afirmação emblemática que marcou os conservadores até hoje e a relação das minorias com a direita britânica: em finais dos anos 1970, Thatcher sugeriu que a imigração estava a ameaçar a cultura britânica. "Esses comentários tornaram impossível às minorias votar na direita. Os líderes seguintes tiveram de se desintoxicar da influência dela", diz Berkeley. "O Reino Unido evoluiu e é mais multicultural do que era", contextualiza Solomos. "Muitos dos discursos políticos tentam ganhar o apoio da classe média que se sente ameaçada pela imigração. Mas as coisas evoluíram, e mesmo os conservadores distanciaram-se dessa posição."

Michael White defende Thatcher de algumas críticas, como o ataque aos sindicatos, que, diz, no Reino Unido eram "demasiado poderosos", e acha que houve algum "snobismo e misoginia" nos comentários sobre a mulher que era filha de um merceeiro. Liderou com a força da sua personalidade, com a sua persuasão, não tinha sentido de humor e não era simpática, diz. "Mas não precisava de ser amada. Acho que só chorou duas vezes em público. Meu deus, ela era dura!"

A mão de ferro anti-feminista

Thatcher ainda está viva, mas já não aparece em público e tem perdas de memória. Não é apenas polémica por causa das suas posições políticas. O facto de ter sido a primeira mulher a assumir a liderança do Reino Unido provocou e ainda provoca reacções sobre liderança feminina. A imagem de Dama de Ferro não é apenas um símbolo das suas posições durante a Guerra Fria. "Talvez se comparasse a Churchill, que não era", diz Hilary Wainwright, mas, mais do que tudo, via-se como estando "acima dos outros". "Nunca tentou, conscientemente, transcender a questão do género. Era, abertamente, uma pessoa política. Não era de todo feminista nem estava a querer desafiar os modelos femininos."

Berkeley sublinha que nunca se bateu no parlamento por questões como quotas ou a desigualdade entre homens e mulheres. E Mary Evans chama-lhe antifeminista, retratando-a como alguém que era "horrível para as colegas mulheres", mas nota o paradoxo: apesar de ter mostrado que "as mulheres têm o direito de estar na política e de ter tanto poder quanto os homens", "fê-lo sem estar consciente das implicações". Até porque, nota Michael White, Thatcher preferia a companhia dos homens.

O seu percurso foi o percurso clássico de uma mulher que quer ter sucesso, diz Evans: "Trabalhou duas vezes mais do que os homens." A representar algum estereótipo, será o da "boa estudante". "Chegou onde chegou seguindo um modelo específico. Não conseguia perceber a diversidade, maneiras diferentes de ver o mundo. No fundo, queria acabar com a diversidade."

Se pôs em causa a ideia de que a liderança é coisa de homens, acrescenta John Solomos, o que lhe interessava era mesmo a política. Ou seja, mais do que uma mulher política, era uma política "strictu sensus". A sua retórica era a de "um líder forte".

Para Andrew Gamble, captou qualquer coisa na cultura do seu tempo que lhe permitiu tornar-se única e incorporar "uma nova forma de liderança" - não apenas por ser mulher, mas também por ter uma personalidade dominante num ambiente sexista. A sua habilidade? "Como mulher, sabia que podia fazer certas coisas que os seus colegas homens não podiam. A sua frontalidade e até a forma rude de ser não seriam aceites a um homem, seriam consideradas autoritárias. Eles queixavam-se dela, mas era muito difícil confrontá-la. Quando descobriu este poder nela própria, percebeu que tinha uma força que os homens não tinham e usou-a contra eles. Parte desse poder era a novidade de ser uma mulher primeiro-ministro."

Desde então, o Reino Unido não teve mais nenhuma mulher a liderar um grande partido.

Sugerir correcção