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O exílio, escreve Dubravka Ugresic, "é a história das coisas que deixamos para trás, da compra e do abandono de secadores de cabelo, rádios pequenos e baratos, cafeteiras..."

Ficção

Um país sem geografia

Uma brilhante cartografia do desenraizamento do moderno exilado europeu.

José Riço Direitinho

O Museu da Rendição Incondicional

Dubravka Ugresic

(Trad. Sofia Castro Rodrigues)

Cavalo de Ferro

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Após a capitulação berlinense das tropas alemãs na Segunda Guerra Mundial, os militares soviéticos reuniram vários despojos de guerra (uniformes, braçadeiras, cantis, condecorações, bandeiras, armamento ligeiro e pesado, munições, fotografias, passaportes, documentação variada), e expuseram tudo num edifício da zona Leste da cidade a que chamaram ironicamente "Museu da Rendição Incondicional". Décadas depois, no Jardim Zoológico de Berlim, situado na zona Ocidental, abria uma estranha exposição: num mostruário de vidro foram colocados todos os objectos (um gancho de cabelo, paus de gelado, um isqueiro cor-de-rosa, óculos de sol, um carro de plástico verde, um pente de metal, uma chucha, uma lata de cerveja, uma bússola...) encontrados dentro do estômago de uma morsa do jardim, Roland, que morreu a 21 de Agosto de 1961 (por coincidência, uma semana após a construção do Muro de Berlim).

Partindo da ideia de ambas as exposições (e adoptando o título da primeira), a escritora e ensaísta croata Dubravka Ugresic vai traçando, em "O Museu da Rendição Incondicional", a partir de um conjunto de peças (narrativas) soltas - e nisto um pouco à semelhança das ligações que se podem estabelecer entre os objectos encontrados dentro do estômago da morsa -, uma espécie de cartografia do desenraizamento do moderno exilado europeu (o "exilado voluntário"), das ligações quase sempre fugazes a que o exílio o obriga ou condiciona, do deslocamento (que é sobretudo interno), do exílio como um lugar sem geografia (só com novos sons e novos cheiros), daquele lento declínio da perda que acontece sobretudo com as memórias. "Esse exílio é a história das coisas que deixamos para trás, da compra e do abandono de secadores de cabelo, rádios pequenos e baratos, cafeteiras... Esse exílio é um mudar de voltagens e "kilohertz", uma vida com um adaptador, para não nos queimarmos. Esse exílio é a história dos nossos apartamentos temporariamente arrendados, das primeiras manhãs solitárias enquanto abrimos o mapa da cidade em silêncio, descobrimos no mapa o nome da nossa rua e o marcamos com uma cruz a lápis." (p. 174)

Todas as lembranças são memórias que se vão tornando desconexas e que a todo o custo parece ser preciso agarrar, ou tornar a montar como um puzzle, mantendo a matriz inicial para que a identidade não se perca. Com a sua habitual complexidade de pensamento, apesar do tom simples, Ugresic conta, a propósito do valor das lembranças, uma anedota (que mostra bem o valor da memória para aqueles que têm de partir): quando um dia avistou na mira a casa de um seu conhecido, o criminoso de guerra Ratko Mladic, que passou meses a bombardear Sarajevo a partir das montanhas, pegou no telefone e ligou-lhe, dizendo que lhe dava cinco minutos para ele reunir os seus álbuns de fotografias antes de fazer explodir a casa; o general concedia assim ao seu conhecido "o direito à lembrança"; Mladic sabia como se aniquila a memória. Numa das várias histórias soltas que compõem uma das partes deste extraordinário romance, há ainda um bósnio que diz que os refugiados se dividem em duas categorias: "aqueles que têm fotografias e aqueles que não têm nenhuma". E na parte intitulada "A Poética do Álbum", Ugresic cita Susan Sontag, para quem "todas as fotografias são "memento mori" (...) Precisamente ao cortar e congelar este momento, todas as fotografias testemunham a fusão inflexível do tempo."

Recorrendo por vezes a uma espécie de diário, usando um pretenso testemunho pessoal, e paralelamente recordando a história da vida da sua mãe de origem búlgara, que se mudou para a Croácia com o casamento, e também a histórias de outros exilados, Ugresic quer mostrar-nos que, quando a viagem se torna exílio, a perspectiva é sempre nova e incomparável. Durante várias páginas entretem-se (e entretem-nos) a tecer um "patchwork" apenas com frases de artistas exilados, sobretudo de Nabokov e de Joseph Brodsky (também muita coisa do artista plástico russo Kabakov), uma tapeçaria da memória em que todos os pontos de ligação são fugazes e o processo de reconstrução tem de ser contínuo. Apesar de algumas histórias terem lugar em cidades americanas, e uma também em Lisboa (onde conheceu um "pintas" chamado António, que depois de uma tórrida noite de sexo acabou por lhe levar os honorários da sua participação numa palestra), há sobretudo Berlim, a cidade destruída e reconstruída, sitiada e libertada, a cidade dividida entre o paraíso e o inferno, a cidade em que o exilado de Leste sente o passado e o presente ao mesmo tempo. Cidade que ela "resume" assim: "Berlim é Teufelsberg [a maior colina da cidade, com 115 metros de altura, erguida com 26 milhões de metros cúbicos de entulho recolhido das ruínas que para ali foi levado logo a seguir ao final da guerra], uma morsa que engoliu demasiados artigos indigestíveis. É por isso que se tem de andar com cuidado nas ruas de Berlim; sem pensar, o caminhante pode tropeçar no telhado de alguém. O asfalto é apenas uma crosta fina que cobre ossos humanos. Estrelas amarelas, suásticas negras, foices e martelos vermelhos estalam como baratas debaixo dos pés do caminhante." (p. 242)

Neste quase genial exercício de poética do exílio, que atinge momentos de grande intensidade emocional, Dubravka Ugresic correu o risco do fácil sentimentalismo, mas a sua mestria narrativa nunca a deixou resvalar, antes lhe deu caminhos para abordar questões aparentemente exteriores, como a relação entre a arte e a crítica, as responsabilidades do artista, etc. E tudo isto para ilustrar a ideia de como a arte pode muito bem defender a integridade do mundo.

Poesia

Orquestra descon-certante

Na vertigem de uma procura identitária, Golgona Anghel arrisca muito mais do que a maioria dos poetas portugueses.

David Teles Pereira

Vim porque me pagavam

Golgona Anghel

Mariposa Azual

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À leitura de "Vim porque me pagavam" (Mariposa Azual, 2011) pouco importa que Golgona Anghel tenha nascido na Ilíria Ocidental, como também pouco importa a sua língua materna, e até pouco parecem importar a história e a cultura do seu país, a Roménia. Tudo isto, aparentemente, foi afastado deste livro com uma precisão intencional, à excepção de uns poucos momentos em que se entrevêem algumas referências ao país de origem de Golgona Anghel (ainda que estas surjam quase sempre como um mecanismo de auto-ironia da autora, não mais relevante do que qualquer outro): "Não vou pedir asilo./ Desconheço os avanços/ ou retrocessos económicos do meu país./ Já falei de Drácula que chegue." (p. 13). Diga-se já agora que, curiosamente, um dos poucos poemas em que se nota que Golgona Anghel é uma poeta estrangeira a escrever em português é o seu "Portugal, dia um de Maio de dois mil e oito", onde a autora se relaciona com este país na segunda pessoa do plural, não conseguindo, apesar disso, estabelecer com ele uma verdadeira comunicação que não pareça algo forjada: "As nossas amantes baratas./ As nossas putas disponíveis - agora, se faz favor./ Os nossos sonhos transatlânticos./ Os nossos hábitos light, soft, ecológicos, se possível" (p. 70). Apesar do que se acabou de dizer, não deixa de ser verdade que é absolutamente central saber que o português não é a sua língua materna e, principalmente, que a sua aproximação ao idioma se fez muito mais pela via literária do que pelo hábito de o ouvir e pela necessidade de o falar.

Este segundo livro de Golgona Anghel, depois de "Crematório Sentimental - guia de bem-querer" (Quasi Edições, 2007), é um dos livros mais fortes entre aqueles que foram lançados pela Mariposa Azual, que, como outras pequenas editoras, tem vindo a ocupar o espaço que as editoras de maior dimensão, como a Assírio&Alvim, abdicaram conscientemente de ocupar. Na sua estrutura, "Vim porque me pagavam" encontra-se dividido em três partes - "Sem destino", "Sem personagem principal" e "Sem tempo" -, sem que seja à partida perceptível ao leitor a razão de ser desta divisão. Não é necessária uma leitura particularmente atenta para ficar claro que o esquema de organização dos poemas é um dos aspectos menos conseguidos deste livro. Os poemas têm, entre si, muito mais coerência do que as partes pelas quais Golgona Anghel entendeu reparti-los, o que tem um resultado particularmente estranho: sendo coeso enquanto livro, porque todos os seus poemas são nitidamente impulsionados por um mesmo motor, as suas partes nunca o são, ficando a ideia de que um qualquer outro puzzle destes poemas continuaria, no final, a formar a mesma imagem.

Face a "Crematório Sentimental", apesar de o parentesco entre estes dois livros resultar da partilha de mais alelos que apenas a autoria, há um notável progresso tanto a nível prosódico como estilístico. Um dos aspectos em que melhor se observa este progresso é na disposição dos versos em cada um dos poemas. O verso relativamente longo que abundava no livro de estreia é, em "Vim porque me pagavam", substituído por frases ou versos mais curtos, que fazem os poemas convergir elipticamente para os seus momentos finais: "Escrevo a palavra vazio/ depois da palavra espera.// Pouso as mãos sobre os joelhos cansados./ Limpa/ mal vestida,/ - olhai -/ sou o novo modelo para o fracasso" (p. 22) ou "Eu fácil eu farto eu fome/ com a vida marcada na pele,/ olha-me de frente/ quando gritas e esticas a pernoca./ Quem manda aqui sou eu./ Agora abre a boca." (p. 33).

Porque é que se disse que é central a forma de aproximação de Golgona Anghel à nossa língua e cultura, e também às línguas e culturas francesa e espanhola, que por vezes surgem neste livro? Porque o resultado disto é uma composição prosódica dos poemas muito mais mecânica, porque advém da aprendizagem pela literatura do português, apesar de os seus versos fluírem quase tão instintivamente como uma conversa e de abdicarem, em grande maioria, do refinamento lírico: "A depressão começa a andar na moda./ Fiz diabetes, cortei as veias duas vezes,/ fugi de casa, gastei uma mulher em cada livro,/ perdi a paciência, o rumo da história,/ perdi a memória,/ a cabeça, senhores telespectadores,/ (tinham entretanto inventado a televisão)/ no minúsculo/ buraco negro/ duma bala." (p. 67). Neste nível, o trabalho poético de Golgona Anghel não é apenas admirável, é também completamente original.

"Vim porque me pagavam" é um livro desconcertante, o seu aparato de recursos não pode deixar de causar uma certa confusão no leitor. Utiliza do humor tanto o seu efeito cómico como a sua capacidade para humilhar a nossa natureza, principalmente quando vira esta contra si própria, contra o seu corpo ["Tudo tende à efabulação no nosso país/ e é com estes elementos alegres,/ que nós procuramos,/ se não restaurar o império de África,/ ao menos celebrar os santos populares." (p. 52) ou "O meu corpo foi sempre um campo de batalha./ Passaram tantos soldados por aqui,/ mas a revolução ficará sempre sem futuro" (p. 20)]; cultiva uma pose aparentemente tão despreocupada quanto inofensiva, mas que, como um lobo que se disfarça de cordeiro, é uma ameaça, o que é evidente no próprio título do livro ou em versos como estes: "Obrigado por procurem a eternidade da raça./ Mas a poesia, mes chers, não salva, não brilha, só caça" (p. 26) ou "Vou esvaziando os copos/ e começo a compilar beijos,/ como quem junta, à pressa, moedas caídas pelo chão:/ somos todas putas, rapaz,/ com ou sem vodka." (pp. 51 e 52). Repare-se que em contraste absoluto com o minimalismo estético da capa e da encadernação deste livro, a poesia de Golgona Anghel é extravagante, plena de exuberâncias e adornos, apesar de isto acontecer muito no seu aparato imagético e referencial e pouco na composição lírica dos seus poemas ["Vim porque me falaram de apanhar cerejas/ ou de armas de destruição em massa./ Mas só encontrei cucos e mexericos de feira, metralhadoras de plástico, coelhinhos de Páscoa e pulseiras/ de lata.// A bordo, alguém falou de justiça/ (não, não era o Marx)." (p. 58)].

Mas há uma outra razão, talvez mais importante ainda, para este ser um livro desconcertante. Ele revela-nos, com uma profundidade e uma honestidade que não podem deixar de ser notadas, alguém que tem uma visão do mundo totalmente mutilada, porque a vê com uma muralha de livros - com uma muralha literária - por intermédio. Este detalhe é, contudo, ambivalente. Mostra que Golgona Anghel é uma das poucas autoras que de forma sincera e, ao mesmo tempo, competente consegue traduzir esta condição de interpretação do mundo nas palavras dos outros. Contudo, ao mesmo tempo, essa muralha é uma fronteira que a autora coloca entre o leitor e uma chave de compreensão dos seus versos. À partida, daqui não resultaria necessariamente um problema de leitura, mas, para isso, a abundância de referências a livros e a autores, personagens e lugares de livros deveria ser muito mais frugal ou, pelo menos, muito mais estruturada e menos orgíaca. É importante ter sempre em conta a lição de Mallarmé, a poesia é feita de palavras e não de ideias e, acrescente-se, muito menos de referências literárias cultas. Estas só muito tangencialmente atestam a qualidade de um poema e a sua profusão incorre não poucas vezes num resultado incómodo: a artificialidade ["Talvez o requinte em retardar,/ que fazia com que o marquês de La Fayette,/ dirigindo-se para a flor do seu desejo,/ tomasse séculos a chegar à hora H./ Sabe o que dava tanta pica à hora H/ nos tempos do rei Artur? Não sabe... Pois,/ resultados de não lerem/ Geoffroy de Monmouth (século XIII)." ou "Mas não foram estes floreados rimados/ que mais prejudicaram Dante aos olhos de Beatriz?/ Não dizia a própria Laura que Petrarca poderia ter tido acesso às suas graças se não falasse demais?/ Sem dúvida, tudo isto não está escrito/ na obra de Petrarca,/ mas o Dom Quixote insiste em confirmar a história" (repare-se que ambas as citações fazem parte do mesmo poema, pp. 53 e 54)]. Assim, a maturação a que os versos de Golgona Anghel conseguiram chegar, se nos detivermos no nível prosódico, não foi completada no que ao sentido e significado dos seus poemas diz respeito e isto, ao contrário do que possa parecer, não é de todo um trabalho de ideias, é sempre de palavras.

Há, no entanto, que colocar esta autora no seu enquadramento. A poesia de Golgona Anghel, na vertigem de uma procura identitária, arrisca muito mais do que aquilo que estamos habituados a ver em grande parte dos percursos poéticos dos autores portugueses, principalmente se nos centrarmos nos mais novos. Nesse risco, a sua poesia embate muitas vezes nos problemas referidos, mas, no cômputo final, a coragem com que o faz é compensada, porque consegue escapar tanto ao carimbo "blasé", uma pose alternativa entretanto oficializada, como à poesia burocrática e ao seu programa de consumo arrumado nos balcões da tradição literária. Nos seus melhores poemas, esta autora não procura uma defesa fácil naquilo que seria o seu espaço de conforto, como também não se desperdiça no risco de tentar conquistar um espaço de originalidade unicamente pela aparência da diferença. Por isso mesmo, "Vim porque me pagavam" é um dos livros de poemas mais interessantes de entre aqueles que foram publicados nos últimos tempos em Portugal e um dos melhores escritos por uma jovem poeta, que colhe os dividendos ao mesmo tempo que paga as dívidas do projecto que honesta e conscientemente promete com os seus versos.Ensaio

A filosofia das forças

Um livro que é um acontecimento: a última lição de José Gil na Universidade Nova.

Nuno Crespo

A Arte como Linguagem: a última lição

José Gil

Relógio D"Água

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Este livro marca um acontecimento. Trata-se da transcrição da "última lição" dada por José Gil na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde o filósofo português foi professor durante cerca de 30 anos. O formato da lição é, para Gil, uma forma de pensar com os outros e, por isso, a sua lição não foi a última: "Nós, no nosso domínio, como noutros, temos o ofício de pensar, escrever, que não acaba mais, que só tem limites físicos, contingentes e que não pára." (p.9) Este é o paradoxo constitutivo do esforço filosófico: nunca pode cessar, e a sua questão é sempre retomada.

Independentemente da questão do "fim" do filosofar, esta lição é um mergulho no problema da "formação da linguagem artística." Não se trata de uma análise linguística ou estrutural à arte e ao problema da génese das formas e dos gestos artísticos, mas, como Gil mostra na última parte da "lição", dedicada às questões de método (pp.48-58), de uma abordagem que retoma a fenomenologia de Husserl e o pensamento da imanência de Deleuze, naquilo a que chama uma "filosofia das forças". As forças humanas são, para Gil, uma preocupação central onde se cruzam aspectos distintos do saber para, libertos dos vínculos formais e materiais ao mundo, traçar a fisionomia de cada sujeito. Não se trata de isolar o sujeito de todo e qualquer conteúdo da consciência ou da sensação, mas de fazer uma aproximação àquele plano em que já não se pode distinguir entre sujeito e objecto, homem e mundo: este é o plano da imanência onde Gil se coloca para trabalhar e explorar os conceitos de linguagem, arte e forma artística.

Aquela filosofia implica uma estética das forças, porque "se já não há objecto o que é que há então? O que é que fica? O que é que vem? [...] O que fica quando desaparece o referente e toda a forma de representação de uma forma real é a força, a força da sensação.

Essas forças, tal como surgem no contexto artístico (e, para Gil, as observações que faz são válidas para toda a arte, não só para as chamadas artes visuais), configuram uma linguagem. Pode dizer-se estar em causa uma linguagem enigmática e misteriosa, porque dificilmente se consegue partir (analisar) uma obra de arte em unidades mínimas de sentido, mas trata-se de uma evidência inegável porque "falamos, [e] continuaremos a falar da linguagem da dança, da linguagem da escultura, da linguagem da pintura." (p.11) Falar em linguagem artística é claramente um uso metafórico do conceito de linguagem e, portanto, não é lícito fazer o mesmo tipo de exigências lógicas e sintácticas à linguagem artística.

A diferença começa por ser o facto de a linguagem verbal permitir agir num plano meta ("não há possibilidade de fazer da linguagem artística uma metalinguagem, uma linguagem que fale de si própria e que fale das outras linguagens, só há uma metalinguagem, que é a linguagem verbal, que fala de todas", p.11); depois, na linguagem artística, por oposição à linguagem verbal, "cada unidade ou cada sequência, que de certa maneira subsiste por si, representa o mundo, implica um mundo": "Não só se sobrepõem outras unidades, mas há um mundo, um mundo que está sob forma condensada, concentrada numa parte [...]. Num pedaço de um quadro de Rembrandt, está o universo do Rembrandt por inteiro." (pp.25-26) Esta é a mais importante distinção entre as duas linguagens e trata-se de uma diferenciação de condensação, intensidade, força e, finalmente, de articulação. A linguagem verbal necessita da articulação entre unidades pequenas de sentido (fonemas, morfemas, etc), ao passo que, na linguagem artística, cada parte, devido a uma "condensação máxima", exprime o todo. Uma diferença posteriormente desenvolvida na oposição que Gil estabelece entre uma língua das afecções, tal como preconizada pelo suprematismo do pintor russo Malevitch, e a linguagem verbal.

Está em causa para Gil concentrar-se não nos objectos, formas da representação ou objectos da consciência, mas na sensação humana enquanto única realidade: "Um quadrado é a sensação da não existência do objecto, não é a sensação da essência do objecto [...]. Poderíamos dizer que já que a única realidade é a sensação, a gramática é uma gramática de sensações; mas, uma gramática de sensações não é uma gramática de sensações que se exprime em não-formas, ela está dentro das sensações, são as sensações que formam a sintaxe e o léxico." (p.31) Casos em que a realidade supera a ficção.

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