Eles querem um museu que não seja adormecido

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Obras de Giovanni Podesta (à esq.), Wölfli e Henry Darger (à dir., respectivamente em cima e em baixo), nomes de referência no universo da Arte Bruta que, garantem António e Richard, está em crescimento por todo o mundo cortesia António Saint Silvestre e Richard Treger

São cerca de 700 peças, sobretudo de Arte Bruta - pinturas e esculturas feitas por pessoas que viveram em instituições psiquiátricas, prisões ou simplesmente afastadas do mundo. António e Richard estão a trazê-las para Portugal e sonham com um museu para as poderem mostrar.

António Saint Silvestre e Richard Treger chegam animados ao almoço que tinham combinado com o P2 e contam como na véspera tinham tido uma agradável surpresa na visita ao hospital psiquiátrico Júlio de Matos, em Lisboa. "Há vários artistas bons", dizem. Um deles impressionou-os particularmente e compraram-lhe vários desenhos. Richard procura na máquina fotográfica as imagens e mostra os desenhos a preto e branco, traços finos, uma imensidão de detalhes desenhados com rigor obsessivo.

Os desenhos comprados a doentes do Júlio de Matos vão agora juntar-se à colecção de Arte Bruta - arte feita geralmente por doentes mentais, ou pessoas internadas em instituições, ou simplesmente autodidactas com características obsessivas - que António, Richard e a família de Richard vêm coleccionando há perto de 40 anos. Uma colecção que agora estão a pensar doar a Portugal. Falta apenas encontrar quem a queira receber.

Mas, para se perceber o que traz os dois coleccionadores a Portugal, onde se encontra também já grande parte da colecção de cerca de 700 peças - entre as quais os mais conhecidos nomes da Arte Bruta, de Henry Darger a Augustin Lesage - o melhor é começar pela curta apresentação que o próprio António enviou por email num primeiro contacto com o P2.

"Richard Treger e eu, António Saint Silvestre, nascemos ao Sul do Equador, em África, respectivamente no Zimbabué e em Moçambique. Ele, judeu ashkenazi de origem lituana pelo pai e irlandesa pela mãe, educado na tradição vitoriana, nos restos do império britânico, e eu, de origem italo-alentejana, na tradição católica romana, no charme da cultura mestiça de um império português quase intacto."

O início da colecção

Presencialmente, António fala de uma passagem por Évora, a terra da família, na infância e de como na altura detestou tudo (de que mais tarde aprenderia a gostar), desde a comida às "casas geladas, com braseiras que tinham um cheiro esquisito", passando por "todos aqueles santos cheios de sangue, em igrejas barrocas cheias de ouro e incenso, muito impressionante para quem vinha de África, onde as igrejas eram brancas e as Nossas Senhoras sorridentes."

Uma história que os leva, jovens, a Paris, onde Richard estuda piano e António faz escultura. E onde começam a coleccionar arte. "Ao princípio não era Arte Bruta. Era mais arte marginal, outsider", explica Richard. "Só nos últimos 20 anos é que as coisas explodiram no mundo da Arte Bruta. Há duas décadas era um círculo muito pequeno, sobretudo de artistas americanos. E não era nada comercial. As pessoas faziam arte por necessidade absoluta e não havia a especulação que há agora."

E se ainda há dez anos, acrescenta António, se comprava uma obra de Henry Darger por cinco mil euros, hoje custa 200 mil. "O mundo parece ter despertado para o facto de que há pessoas que nunca aprenderam arte, quer vivam em instituições psiquiátricas ou prisões, ou sejam apenas marginais, e que têm um talento inacreditável", diz Richard. E os trabalhos de alguns dos artistas mais conhecidos tornaram-se raros porque muitos deles destruíam o que desenhavam, ou as obras eram simplesmente deitadas fora depois de eles morrerem.

Mas em Portugal muita gente olhava-os com surpresa quando começavam a falar da sua colecção e, sobretudo, quando diziam que a queriam oferecer. Mas, por coincidência, numa das passagens por Lisboa, viram no PÚBLICO um artigo sobre Arte Bruta a propósito da colecção do Hospital Miguel Bombarda, que entretanto foi encerrado.

António e Richard já espreitaram a colecção e estão disponíveis para mostrar algumas dessas obras no espaço que esperam vir a ter em Lisboa ou nos arredores - já existem alguns contactos, mas por enquanto não podem revelar nada.

As heroínas de Darger

E como imaginam que possa funcionar esse espaço onde sonham expor a colecção? "Imaginamos um museu que não seja adormecido", responde Richard. "Um museu com uma ou duas exposições importantes por ano e colaborações com outros museus de Arte Bruta do mundo, com os quais temos boas relações".

Gostariam também, por exemplo, que a Fundação Calouste Gulbenkian lhes emprestasse os desenhos que tem de Jaime Fernandes, o mais conhecido nome da Arte Bruta portuguesa, artista que viveu grande parte da sua vida internado no Hospital Miguel Bombarda e cuja obra está hoje dispersa, muita dela nas mãos de particulares, em Portugal e no estrangeiro.

E que condições pedem? "Estamos a pensar inicialmente emprestá-la por cinco ou dez anos renováveis, e eventualmente dá-la-emos. Só queremos a garantia de que será bem tratada, de que haverá pessoas para abrir o museu...".

Que a colecção terá público e despertará curiosidade, não têm dúvidas. A Arte Bruta, dizem, está a crescer por todo o mundo. E têm já o projecto de mostrar parte da colecção, aproximadamente umas 100 peças, em Abril do próximo ano - embora também ainda não possam revelar onde.

Richard abre o computador e pelo ecrã passam as imagens das peças da colecção. O mais famoso é, sem dúvida, Henry Darger, com as suas Vivian Girls, meninas louras, crucificadas e torturadas num dos milhares de episódios de uma guerra num estranho planeta, que dominou a vida deste misterioso artista norte-americano cuja obra - muitos milhares de páginas de textos e desenhos que ele fez no quarto onde vivia praticamente isolado em Chicago - só foi descoberta no final da sua vida.

Mas há também um dos cadernos de Oscar Voll, alemão, nascido em 1876, e que desenhava obsessivamente cenas com militares, como uma banda desenhada. Voll terá sido internado várias vezes já durante o regime nazi, e não se sabe o que lhe aconteceu a partir de 1935. "É um artista muito importante, que só existe na Colecção Prinzhorn [a mais célebre colecção de arte de doentes mentais] e na nossa", explica Richard.

E os elaboradíssimos desenhos do francês Augustin Lesage (nascido também no final do século XIX e que é outra das figuras maiores do mundo da Arte Bruta), de uma minúcia extraordinária - resultado, dizia o próprio, das vozes que ouvia e que lhe diziam o que desenhar.

Ou ainda as imagens de horror de Form Jaremtschuk, desenhos entre o grito e o vómito, de corpos rasgados, dilacerados pelos choques eléctricos que o próprio artista sofreu no hospital psiquiátrico.

A colecção inclui outro tipo de arte que se integra em movimentos diferentes do da Arte Bruta (assim classificada por Jean Dubuffet, que reuniu uma série de obras que corriam o risco de serem destruídas, e que hoje constituem a colecção do Museu da Lausanne, na Suíça). Ao longo dos anos, Richard e António - que em Paris tiveram uma galeria em Saint-Germain-des-Près - compraram também artistas que se integram na Arte Singular, Nova Invenção e também na Arte Vudu do Haiti, e criaram ainda uma colecção de cerâmicas. Mas o que lhes interessa é sobretudo a Arte Bruta - e é essa parte da colecção que querem continuar a aumentar.

As peças estão, por enquanto, guardadas num armazém, em Lisboa. Por vontade dos dois coleccionadores já estariam expostas. Mas, depois de vários contactos, agora as coisas parecem finalmente bem encaminhadas. António e Richard estão confiantes de que há quem queira aceitar (e tratar bem) aquilo que eles querem dar.

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