A ilha de Saramago é como a escrita vulcânica de José

Em Lanzarote, José Saramago quase reencontrou a Azinhaga da infância. O Prémio Nobel português gostava de fazer caminhadas pisando a cinza dos vulcões e no jardim plantou oliveiras. Nove meses depois da sua morte, Pilar del Río abre A Casa e a Biblioteca ao público e mostra os lugares preferidos do escritor para que a viagem não acabe nunca.

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No álbum de família: José e Pilar fotografados durante a visita que fizeram a Lanzarote no Natal de 1991 na Lagoa Verde e em Los Jameos

Todas as tardes, em Lanzarote, nas ilhas Canárias, José Saramago saía para dar um passeio. Gostava de o fazer porque ia pensando à medida que caminhava. Um dia, enquanto estava a escrever Ensaio sobre a Cegueira, no ano de 1993, quando ainda não se usavam telemóveis, saiu por volta das seis da tarde. Nesse dia, Pilar del Río, a sua mulher, não o acompanhou porque tinha a mãe, de visita, lá em casa. As horas passaram. José não regressava. Passaram as sete, as oito, eram nove da noite e o escritor não voltava.

Pilar, cada vez mais nervosa, começou a pensar que lhe tinha acontecido alguma coisa. Era o tempo em que a ETA estava muito activa e estava tão preocupada que chegou a pensar que o podiam ter sequestrado. A sua mãe estava mais tranquila mas já era noite e houve um momento em que todos estavam inquietos. Tinha vergonha de telefonar à polícia a dizer que um senhor de 70 anos se tinha perdido. Se lhe perguntassem se haveria alguma razão para tanta inquietação, não saberia responder, ele não tinha Alzheimer. Resolveu sair para procurar o marido. "Estava tudo escuro, completamente deserto. Eu estava sem saber para onde ir: José tinha saído para dar uma volta como todas as tardes."

Quando eram quase dez horas da noite, José Saramago apareceu em casa. Completamente sujo, amachucado e com pequenas feridas. Contou que tinha subido até ao cimo da Montaña Blanca e que descer tinha sido muito complicado. Fê-lo pelos sulcos de água. Esta é a quinta montanha de Lanzarote em termos de altitude, o cume fica a 595 metros. Para subir e descer, Saramago teve de se agarrar ao mato. Não há estrada, nem caminho, nem trilho. Tinha as mãos ensanguentadas.

Pilar queria matá-lo. Só dizia: "Ele não se matou a subir à Montaña Blanca mas eu estou a ponto de o matar." Durante vários dias o escritor ficou sem se poder mexer. Quando se queixava de alguma dor, a mulher só lhe dizia: "Aguenta! Aguenta!" E Saramago explicava: "É que eu subi lá acima!" E ela respondia: "Mas que bem." Foi a primeira vez que fez isso e a última. Foi um impulso. A montanha e o homem. "Ele era tão transgressor em todas as normas, por que não fazê-lo? Quando comentávamos com outras pessoas que José tinha subido à montanha, diziam-nos que só subiam lá acima os peritos para colocarem as antenas. Ninguém sobe. José subiu. Sem calçado adequado, sem nada para se apoiar e além disso de noite, quando regressou era já noite cerrada." Para ele, foi tal qual como se tivesse subido ao Evereste. Lá de cima, viu a ilha completa. "Ao que eu lhe respondi que a víamos sempre dos aviões. "Qual é o problema? Onde está a poesia disso? Se quiseres vamos ao hotel que tem 16 andares e também a vês", dizia-lhe a jornalista espanhola que um dia, depois de ter lido O Ano da Morte de Ricardo Reis, resolveu ir a Lisboa conhecer o homem que tinha escrito esse livro, a 14 de Junho de 1986, dia em que conheceu aquele que viria a ser o homem da sua vida.

"Lanzarote sin ser mi tierra, es tierra mia", disse José Saramago quando, em 1997, o governo insular de Lanzarote o nomeou Filho Adoptivo da ilha em que residiu nos últimos 18 anos da sua vida. Esta frase está numa placa, colocada em Novembro de 2010, à porta da Livraria Liberdad, na Rua Liberdad, perto de A Casa e Biblioteca de José Saramago, que desde 21 de Março está aberta ao público e pode ser visitada de segunda a sábado.

Este caminho, que se faz virando à esquerda quando se sai da Calle de Los Topes, 3 e 1, em Tías, onde fica a casa do Prémio Nobel da Literatura português, foi o percurso que o escritor quis fazer a primeira vez que saiu do hospital de Lanzarote onde esteve internado, muito doente. Pilar recorda agora, sentada na varanda de sua casa de onde se vê o mar, como esse momento foi "maravilhoso". Saramago tinha perdido massa muscular e, naquele dia, ir à livraria foi como voltar a subir à Montaña Blanca.

O que as pessoas fazem

No dia da inauguração oficial de A Casa, 18 de Março, duas turistas de Zaragoza, duas mulheres maduras, aproximam-se de Pilar muito emocionadas. Contaram-lhe que estiveram a ler juntas nesta viagem O Caderno 2 (com os textos do blogue e que em Espanha se chama El último cuaderno) e naquele dia, em que passavam nove meses sobre a morte do escritor, subiram as duas a Montaña Blanca.

"Incrível o que as pessoas fazem... Também é verdade que nós subimos uma montanha bem terrível - de carro, claro - para colocar uma flor a Miguel de Unamuno no monumento que está na Montaña Quemada, em Fuerteventura. Suponho que é o mesmo, que tem correspondência. Fomos um dia, subimos e levámos-lhe uma flor. Então o homem que foi levar uma flor a Miguel de Unamuno pois agora também recebe flores", conta Pilar del Río emocionada.

A cheirar os seus pés, a entrar e sair da cozinha, andam divertidos os cães Camões e Boli. Em 1995, o ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho, telefonou a José Saramago a anunciar-lhe que lhe tinha sido atribuído o Prémio Camões. Pilar estava a tentar ouvir a conversa quando ouviu na cozinha os gritos da vizinha. "Pilar, por favor, chama o meu marido pelo telefone que está ali um cão raivoso." Foi lá ver, o cão estava debaixo do carro, afinal era só um cachorro assustado.

O telefonema entre Carrilho e Saramago demorou muito tempo e o cão foi entrando em casa. Bebeu água. Quando José desligou o telefone, disse: "Deram-me o Prémio Camões." Ela respondeu-lhe: "E aqui temos Camões, o cão de água português."

A cozinha, por onde passam agora os visitantes e lhes é oferecido um café português por Pastora, a cozinheira de Saramago, é o lar daquela casa. Foi ali que o fotógrafo Sebastião Salgado, vindo de Paris, no final de um almoço, disse a José: "Gostava que visses isto." Espalhou em cima da mesa um monte de fotografias gigantes com trabalhadores rurais de vários lugares do Brasil, os sem-terra. José Saramago olhou para os retratos e começou a chorar.

O escritor tinha a tese de que todas as fotografias precisam de uma palavra que as explique. Para ele, as palavras não necessitam de fotografias mas as fotografias precisam de palavras. Mas quando Sebastião Salgado lhe disse ao que vinha - queria que escrevesse textos que acompanhassem as imagens - o Nobel respondeu-lhe: "Estas fotos não precisam de nenhuma palavra." Por isso fez um prólogo ao livro Terra. Ficaram famosas as fotografias que nessa época a câmara de Sebastião Salgado captou de Saramago e da sua mulher, a preto e branco, no município de Tías, no Volcán El Cuervo.

A última vez que estiveram neste lugar foi quando o ex-ministro da Cultura José António Pinto Ribeiro esteve na ilha a visitar Saramago depois de este ter saído do hospital. Na última terça-feira, sozinha, Pilar percorreu o mesmo caminho em busca de Saramago. Um vulto, correndo na terra de lava, em direcção à cratera onde assistiram a concertos no tempo em que decidiram vir viver para a ilha.

A primeira vez que José Saramago esteve em Lanzarote foi de passagem, em 1991, entre conferências que deu nas Canárias. Dos 14 irmãos de Pilar, uma, Maria del Río, e o seu marido, o arquitecto Javier Pérez Fernández-Figares, tinham vivido muitos anos na Nigéria e, como estavam "apanhados" por África, não quiseram voltar a viver na Europa. Arranjaram trabalho em Lanzarote e ficaram.

Nessa altura, Saramago ficou por 24 horas. Regressou no Natal. "Ai que bom seria um dia termos uma casa aqui para poder vir de vez em quando", pensava na época o casal, mas era uma ideia longínqua.

Num álbum de família estão guardadas as fotos dessa primeira temporada em Lanzarote, foi um Natal em fato de banho. As fotografias no álbum têm legendas e estão datadas: 25 de Dezembro de 1991. Foram à Playa de Famara, onde encontraram um pescador que colocava o isco como o faziam os homens pré-históricos: areia e sardinha amachucada com pedra. Há fotografias de José rodeado de mulheres ("O sultão e o seu harém"), outras tiradas num sítio maravilhoso, el Golfo, a "lagoa verde" que mostrou ao editor português, Zeferino Coelho, quando este visitou a ilha do seu autor pela primeira vez. "É uma espécie de pequeno lago que tem uma cor verde eléctrica", conta Zeferino, que também foi com José a pequenas feiras onde se vende pão, mercados com produtos locais.

Para o outro lado do mundo

No álbum, há também uma fotografia que tiraram, Pilar e José, em Los Jameos del Agua, a primeira atracção arquitectónica da ilha desenhada por César Manrique em 1968. "Imagem bucólica de um paraíso, em Los Jameos com amor", é a legenda. Há um restaurante e os turistas descem à gruta, caminham pelos tubos vulcânicos, e deparam-se com um lago onde vivem pequenos caranguejos cegos. Neste local, ao pé do Volcán de la Corona, cuja última erupção foi há 3 mil anos, reproduzem-se caranguejos, pequenos, brancos, que vivem na obscuridade.

"Há duas formas de os organismos vivos reagirem à pouca luz, ou desenvolvem olhos grandes como aqueles peixes de profundidade ou perdem a capacidade de ver, os órgãos vão-se atrofiando. Estes caranguejos desenvolveram umas patas muito compridas, umas pinças que são maiores que o corpo e ficaram cegos", explica Violante, a filha de José Saramago, que é bióloga e agora regressou ao local que o seu pai, o autor de O Ensaio sobre a Cegueira, gostava de visitar.

No magnífico auditório da gruta Los Jameos recebeu a distinção de Filho Adoptivo de Lanzarote, numa cerimónia em que cantou Carlos do Carmo acompanhado por Pedro Guerra, Lourdes Guerra e Luis Pastor que musicou poemas de Saramago no disco Nesta Esquina do Tempo.

Nesse Natal de 1991, Saramago não imaginava a volta que a sua vida ia dar. Em 1992, o subsecretário da Cultura Sousa Lara veta a escolha de O Evangelho segundo Jesus Cristo para o Prémio Literário Europeu, considerando que a obra "não representava Portugal" e era "profundamente polémica". José, conta agora Pilar, "nunca recuperou do choque de que um governo democrático vetasse um livro com argumentos de que 1) ofendia os portugueses 2) Saramago era comunista não podia representar Portugal 3) estava mal escrito [risos]. A Saramago, o que o chateou foi dizerem que estava mal escrito. Desde quando é que um governo é crítico literário? Então, com toda a polémica que se armou em torno disto, disse-me : "Eu ia para o outro lado do mundo." E eu respondi-lhe: "O outro lado do mundo chama-se Lanzarote"."

"Estás louca", respondeu-lhe o escritor. Mas no dia seguinte: "Sabes em que estive a pensar esta noite? Se calhar não é uma ideia tão má essa de irmos para Lanzarote." Ao seu cunhado Javier Pérez Fernández-Figares, o arquitecto que desenhou as casas gémeas onde as duas famílias vivem e que é agora o director de A Casa e Biblioteca de José Saramago, confessou um dia: "Esta es mi tierra de acogida. Soube-o desde o primeiro momento. Enpieza a hacer los planos que esta vai ser nuestra casa." Mudou-se para Tías em Fevereiro de 1993. Em Lanzarote tinha tranquilidade para viver e escrever, equilíbrio entre trabalho e descanso. Para ele, Lanzarote era como se fosse o princípio e o fim do mundo. Numa entrevista nesse ano afirmou: "Digamos, para não dramatizar as coisas, que Lanzarote apareceu quando eu mais precisava de um lugar assim."

Fernando Gómez Aguilera, director da Fundação César Manrique, em Lanzarote, recorda que, nos Cadernos de Lanzarote, Saramago questionava se esta terra não seria a Azinhaga revivida. O biógrafo do escritor e curador da exposição A Consistência dos Sonhos, ao procurar razões para isso encontrou duas: "Primeiro, Lanzarote exibe uma textura semelhante à consciência de Saramago e na materialidade da ilha encontrou uma alma gémea que não deixou de lhe suscitar emoções como as que na sua infância o haviam comovido na sua aldeia natal portuguesa. Segundo, Lanzarote retribuiu a Saramago o tempo que lhe roubava o mundo."

Quando o jornal El País lhe perguntou um dia qual era a sua zona preferida na ilha, o autor de Todos os Nomes respondeu que eram uns campos de lava entre Yaiza e Timanfaya. "O silêncio, o vento, rodeado da escuridão dos materiais, da pedra. A sombra de uma nuvem a passar sobre a montanha. Não fui lá muitas vezes, porque assim é melhor: por repetição, deixamos de ver o que antes nos parecia maravilhoso."

A escritora Inês Pedrosa, pela primeira vez em Lanzarote, durante o passeio que a Fundação Saramago organizou para as duas dezenas de pessoas que vieram de Portugal para assistir à cerimónia de inauguração de A Casa, nunca imaginou que a ilha fosse tão parecida com o tom dos livros dele.

"É um tom terra, um tom de pedra, de luta contra os elementos. Vê-se como de uma terra deserta se criou qualquer coisa como a casa da Fundação César Manrique ou Les Jameos de Agua e, ao mesmo tempo, como se preserva esta paisagem muito próxima do inícios dos tempos. Temos vários espaços sem casas, planícies cercadas por montanhas e vulcões", disse Inês Pedrosa.

Estava impressionada por ver essa "característica telúrica e vulcânica da escrita de José" e pela proximidade do mar. "Aquele homem parece uma estátua viva nascida nesta terra (referindo-se às fotos em que se vê Saramago nos vulcões da ilha), parece nascido cá. Era, de certo modo, a terra da Pilar, mas a Pilar não era daqui. Ele era e portanto ela vai-se embora e deixa-o aqui. Acho isso muito bonito", diz a directora da casa Fernando Pessoa, a quem coube ler na cerimónia passagens do romance O Ano da Morte de Ricardo Reis.

Nesta obra, a personagem Ricardo Reis tem uma conversa com Fernando Pessoa, que está morto, e lhe explica que são precisos nove meses, "tantos quantos os que andámos na barriga das nossas mães", para que os vivos se esqueçam dos mortos: "(...) antes de nascermos ainda não nos podem ver mas todos os dias pensam em nós, depois de morrermos deixam de poder ver-nos e todos os dias nos vão esquecendo um pouco, salvo casos excepcionais nove meses é quanto basta para o total olvido".

Razão por que a casa foi inaugurada no dia 18 de Março de 2011, embora, como disse Pilar na cerimónia, "esqueceu-se que, por mais nove meses que passem, não o vamos "olvidar" nunca".

Naquele ano de 1993, em que Saramago subiu à Montaña Blanca e a sua mulher estava preocupada com o passar das horas. Mas aos visitantes d"A Casa não escapa que os relógios expostos estão parados nas quatro da tarde. José Saramago adorava a sua colecção de relógios. Mas Pilar del Río tem um problema com os ruídos e uma das coisas que mais a irritam é o "tic-tac", "tic-tac".

Nos tempos em que viviam em Lisboa, à noite, ela fazia excursões pela casa, ia apanhando os relógios e metia-os na varanda fechando a porta. "A casa era muito pequena e os relógios ouviam-se por toda a parte, não conseguia dormir. Era simpático ao princípio, quando fazia bom tempo, mas num Inverno o marido disse-lhe: "Não te preocupes, não precisas de fazer mais excursões nocturnas. Os relógios vão ficar parados"."

Pilar viu-o a mexer nos relógios, perguntou-lhe se ia continuar a dar-lhes corda e Saramago respondeu que não, estava a pôr a hora que deviam marcar. Quatro da tarde. A hora em que se viram pela primeira vez. E hoje os relógios continuam a marcar a hora que ele ajustou há 23 anos.

Uma casa feita de livros

"Esta é uma casa particular onde vive gente", avisa o guia Enrique Berzosa no primeiro dia em que A Casa de José Saramago esteve aberta ao público. "Por isso vos peço que tenham cuidado com tudo." A vivenda que agora pode ser visitada de segunda a sábado, das 10h às 14h, em grupos reduzidos de não mais do que 15 pessoas, a cada meia hora, foi definida por José Saramago como "Uma Casa feita de Livros".

Depois de se passar o pátio, entra-se no hall de onde se parte para as outras divisões. Ali está um quadro grande do pintor maiorquino Joan Miquel Ramírez e um tapete de terra vulcânica do qual Saramago tinha muito orgulho. É ali também que está a primeira obra de arte que o escritor comprou na ilha: uma gravura de César Manrique.

É lá que está o retrato do escritor feito pelo pintor português David Almeida, um pequeno quadro de Rogério Ribeiro, uma paisagem islandesa do pintor de Lanzarote Ildefonso Aguilar e duas gravuras de "Pessoa antes de ser grande" de Bartolomeu dos Santos.

As primeiras linhas de Ensaio sobre a Cegueira foram escritas no escritório ao lado, que está tal qual como ele o deixou. Há uma secretária de pinho, com as pernas mordidas pelos cães, onde está o último computador de secretária que usou antes de passar a usar o portátil que levava para a biblioteca onde escreveu os últimos livros. Dicionários, CD, vídeos, retratos da família: os avós, os pais, a filha única, os netos. Numa das fotografias vê-se Saramago ajoelhado no chão a escrever num papel a frase retirada de O Evangelho segundo Jesus Cristo que a sua mulher levaria no vestido à entrega do Nobel em Estocolmo. "Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe a ti", diz Maria Madalena, e Jesus Cristo responde: "Quero estar onde a minha sombra estiver, se lá é que estiverem os teus olhos."

Há um desenho na parede onde se vê o seu avô Jerónimo abraçado a uma árvore, que lhe foi oferecido por um professor de Matemática, de Madrid, que estava a ficar cego. No folheto que é distribuído aos visitantes e serve de guia com um texto de Pilar del Río é-nos explicado que foi a olhar para este desenho que Saramago compreendeu que o discurso do Nobel não podia começar de outra maneira: "O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever."

Quando se comparam os primeiros livros de Saramago com aqueles que escreveu já nesta ilha, costuma dizer-se que a primeira fase representa "uma literatura barroca, muito efusiva, carregada de imagens", explica Zeferino Coelho. "A determinada altura, tudo isso se torna muito mais depurado, muito mais seco, indo mais ao essencial. Provavelmente Saramago encontrou aqui uma paisagem mais correspondente a este estado de espírito."

Pilar está a reler O Evangelho segundo Jesus Cristo, e todas as noites lê passagens de uma beleza sensacional. "Há uma descrição de um amanhecer, de um pôr do sol, parágrafos que nos deixam sem respiração de tanta beleza. Tal como já se via em O Ano da Morte de Ricardo Reis. A partir daqui, nos livros que aqui escreveu há uma espécie de sobriedade estilística. Poderia descrever o pôr do sol, maravilhoso, como aquele que vimos ontem. Podia descrevê-lo mas não o faz. Escreve: "Pôs-se o sol." Ponto final." É o que José explicava: "Até ao O Evangelho... descrevi a estátua, desde Ensaio sobre a Cegueira o que me interessa é a pedra de que é feita essa estátua."

A um canto do seu escritório está a colecção de pedras recolhidas em vários lugares do mundo (Timor, Acteal, Chiapas, Machu-Picchu, Castril, Grécia, Lanzarote, o rio Foa, Islândia...). Pela casa também está espalhada a sua colecção de cavalos. "O seu tio, que era capataz, deixava a menina rica montar mas ele, que era rapaz e pobre, nunca podia montar. Então as pessoas começaram a oferecer-lhe cavalos. Alguns foi ele que comprou, mas a maior parte são presentes de outros escritores e sobretudo de gente anónima. Temos muitos, alguns são tão belos que estão na exposição A Consistência dos Sonhos, que vai no final de Maio para o México." Outra colecção é a de elefantes. "Todos presentes. Nunca comprou nenhum."

Pepa Sánchez-Manjavacas, que durante muitos anos ajudou Pilar del Río como revisora nas traduções e por isso conviveu com Saramago, é uma das guias que todas as manhãs mostra a casa e a biblioteca. "José dizia que era muito fácil escrever um livro. Os títulos, normalmente, apareciam-lhe de repente - num avião ou da maneira mais inusitada. Contava que para escrever um romance partia de um princípio e encontrava um final. Depois, fazia o caminho entre uma coisa e outra. Como se fosse muito fácil, mas não era fácil, claro!", diz.

Nada parece existir

Ao percorrer esse caminho na história que ia montando, deparava-se com problemas que tinha de solucionar. Então, em vez de ficar parado em frente ao computador, descia até ao jardim onde ficava a passear: pensando.

"Nesses momentos a cara dele transformava-se. Ele não estava ali realmente, pensava no livro. Principalmente durante a escrita de Ensaio sobre a Cegueira, que foi de gestação muito complicada. Notava-se na cara dele. Sempre disse que foi o livro em que mais sofreu a escrever." Para se concentrar, muitas vezes, José Saramago andava no jardim a apanhar a porcaria dos cães. "Era impressionante. Já era um Prémio Nobel! Havia um jardineiro encarregado do jardim e todos ficávamos um pouco alucinados porque ele queria fazê-lo. Vinha com o saco de plástico e ia recolhendo o cocó dos cães."

Ana Matos, a neta de José Saramago, passou férias de Verão na ilha, com o avô. Coincidiu com a altura em que deixou de ser engenheira informática a tempo inteiro, em 2002 e 2003, e decidiu abrir a Galeria das Salgadeiras. A rota dos vulcões no Parque Nacional de Timanfaya, em que "parece que há uma ausência de tudo - a gravidade, o espaço, nada parece existir", era um percurso que fascinava o avô. Bem como percorrer algumas das vilas e dos pueblos onde há os cata-ventos, as esculturas e os moinhos do arquitecto César Manrique. "O meu avô estava a escrever e tinha a sua rotina. Guardo dessa altura uma percepção do mundo que eu não tinha. Foi um grande ensinamento. O meu avô não era pessoa a quem eu fosse pedir conselhos ou telefonar porque estava com uma dúvida, nem ele os daria. Mas aquilo que se ia aprendendo nas entrelinhas e nas coisas que ele dizia é que foi a grande aprendizagem para mim."

Os netos dizem que o avô vivia pela casa toda. Na cozinha, estava sempre às refeições. Na sala, sentava-se a seguir ao almoço a ler o jornal ou a fazer uma sesta. À noite, a ver um filme, série ou debate de televisão. No escritório, escrevia todos os dias. Pedia às vezes ajuda para procurar factos relacionados com aquilo que andava a escrever. Passeava pelo jardim e usava a piscina.

"Normalmente havia sempre gente cá em casa. Sempre foi uma casa aberta e é curioso essa vontade da Pilar, no fundo, em continuar isso", explica Ana, para quem o regresso a esta casa só se conclui quando faz o percurso pelos quadros nas paredes de todas as divisões. "Aquela sala, gosto muito de estar ali a olhar. Faz-me bem." É lá que está a obra do pintor português Santa-Bárbara, da série que realizou sobre Memorial do Convento.

Uma pintura de Pomar com o rosto de Blimunda; outra de Bartolomeu dos Santos com Pessoa e o Tejo ao fundo, baseada em O Ano da Morte de Ricardo Reis. Obras de Ilda Reis, a avó de Ana Matos e de Tiago, um Tàpies sobre papel pautado que mistura música e pintura, paixões de Saramago.

Um coração vermelho

Da sala, onde se vê o jardim, os visitantes passam à divisão do quarto onde o escritor morreu a 18 de Junho de 2010, às 11 e meia da manhã, de "um dia em que tudo parecia normal". É o quarto em que Pilar del Río ainda dorme quando está em Lanzarote e a casa deixa de estar aberta ao público. Na cama, entre as almofadas, um pequeno coração vermelho.

"A singularidade desta casa em relação a outras casas-museus é que é uma casa viva", diz a directora da Casa Fernando Pessoa. "É comovente porque é uma casa onde se vê que viveu um casal. Está cheia de fotografias, é uma casa feita pelos dois. Percebemos os momentos de silêncio e os momentos de solidão, onde os dois se entenderiam. A casa tem valor por causa da colecção de pintura e também por ser o ambiente do escritor. Pilar dizia ontem que teve muitas dúvidas em pôr o quarto à vista. É de facto o que as pessoas querem ver. Temos essa experiência na Casa Fernando Pessoa, em que o quarto do Pessoa foi reconstituído porque os turistas e as escolas pediam para o ver."

O percurso pel"A Casa e Biblioteca de José Saramago passa ainda pelo jardim onde plantou dois marmeleiros em homenagem a Antonio López e ao realizador do filme O Sol do Marmeleiro. Um sobreiro, semente que o escritor plantou num pote mas cresceu tanto que teve de ser transplantado para o jardim, e duas oliveiras portuguesas que lhe lembravam a Azinhaga.

Ao fundo, a piscina onde nadava todas as tardes e a pedra onde se sentava a olhar o mar. Ruma-se ao edifício ao lado, onde está a biblioteca e está a oliveira alentejana que transportou de Portugal entre as pernas durante a viagem de avião. Na terra de lava à volta, plantaram relva. Não vingou e nasceram ervas selvagens. "José ficou contente porque disse que assim gostava muito mais. Os pequenos detalhes deste lugar, todos têm que ver com José", explica Pilar.

Nos últimos anos, o escritor não saía muito de casa. Cedo para ele eram as nove da manhã, altura em que se levantava. Lia os jornais enquanto tomava um pequeno-almoço opíparo, grande, relaxado. Fazia tudo muito lentamente porque ia pensando. Enquanto fazia a barba, teve a ideia de O Homem Duplicado: "E se viesse ao mundo uma pessoa similar a nós?"

Continuem a lê-lo

Quando acabava tudo isso, normalmente sentava-se, ficava no computador, quando já havia Internet, a ver a correspondência, e dedicava a manhã a escrever um artigo ou a fazer um prólogo. Depois de comer descansava e então é que se punha, de tarde, horas intermináveis a escrever os romances no computador.

No final da sua vida, como ele dizia que "o tempo aperta", então já escrevia pela manhã, à tarde e à noite. Tanto podia escrever na biblioteca, como cá em casa. O que acontecia é que se houvesse vento não saía. Ficava em casa e escrevia no portátil. Escrevia continuamente, bateu todos os recordes. Saiu do hospital em Fevereiro 2008 e morreu em 2010. Nesse período escreveu quatro livros: os cadernos do blogue e os romances A Viagem do Elefante e Caim.

Nos primeiros dias de visitas apareceram muitos habitantes de Lanzarote com curiosidade para conhecer a casa onde vivia o homem com que se cruzavam na rua. As entradas custam dois euros para os habitantes e oito para os visitantes de fora da ilha. Vão poder ser comprados através do site www.acasajosesaramago.com. Uma das raparigas, Vitoria Luna, que trabalha na câmara, estava surpreendida porque imaginava um quarto maior.

"A Casa é muito modesta. A minha casa é maior e eu não sou rica, nem Prémio Nobel", dizia. Para José Oliveira, editor da Teorema e da literatura infantil da Caminho, "ver o sítio físico onde ele viveu foi muito emocionante. Além da casa, a circunstância da ilha, que é impressionante." Conhecia as fotografias e o filme José & Pilar, de Miguel Gonçalves Mendes, mas uma coisa é a reprodução e outra é a realidade. "Depois de vir cá percebi melhor a personalidade e a obra."

Uma professora de Português, Luísa Monteiro, trouxe o filho para vir conhecer o local onde viveu o Prémio Nobel. "Fiquei fascinada principalmente com a biblioteca. Achei que Saramago estava ali connosco. Penso que quem vier cá vai também senti-lo nas suas obras, nos seus pertences. Era um ser humano como nós, com as suas interrogações, que as transmitia para a escrita, e isso transpira aqui."

Durante muito tempo Saramago tinha a biblioteca na cave da casa. Zeferino Coelho ainda foi lá umas quantas vezes coscuvilhar o que ele tinha. "Tem bastantes coisas publicadas nos anos 40 e 50: ficção e poesia. Tem uma boa selecção de coisas latino-americanas. Tem coisas várias, é uma biblioteca bastante rica."

Paulo Piteira, do Página a Página - Divulgação do Livro, que também quis ver onde Saramago vivia, considera importante que as pessoas não transformem a casa num local de romagem de saudade. "Não é esse o objectivo, é de facto um passo no percurso de um leitor do Saramago. A melhor celebração que podemos ter da obra de Saramago é continuar a lê-lo. Mantendo a sua obra viva."

"Pelo seu compromisso com a vida - goste-se ou não da ideologia - Saramago é um escritor de peregrinação", considera Inês Pedrosa. "É engraçado, era um homem que bradava tanto contra Deus, mas há alguma coisa de religioso na relação que as pessoas têm com ele. Percebi isso quando fizemos na Casa Fernando Pessoa a maratona de leitura da sua obra. A sala nunca se esvaziou até às três e meia da manhã e no dia seguinte apareceram pessoas a perguntar: "Não continuamos hoje?" Como se fosse uma peregrinação a Fátima. Ele tem esse lado. Aquela luta constante com Deus e mesmo a sua tentativa permanente de regeneração moral do mundo é no fundo uma coisa muito cristã."

Por estes dias, mesmo quando A Casa não estava aberta ao público, apareceram pessoas de várias partes do mundo. Um corrupio. Por isso, Zeferino Coelho acredita que as visitas vão ter muito êxito. "Quando ele vivia aqui, já havia uma romaria de pessoas. Até aconteciam coisas extraordinárias, ele acabava por receber pessoas que nunca viu na vida nem nunca voltou a ver. Passavam, batiam à porta, perguntavam se era a casa do Saramago. Entre. Aquela coisa. Eles eram realmente muito acolhedores e nada formais. A Casa, pelo que vi, está praticamente como estava. Não foram feitas grandes mexidas e portanto é possível ver o ambiente de trabalho. É uma hipótese de vir dar uma voltinha e meter a casa onde viveu José Saramago no destino de férias."

José Saramago gostava de ir a um restaurante no El Golfo com uma boa vista e também a um libanês, em Arrecife, onde surgiu a ideia de fazer a fundação. "A ideia da Fundação José Saramago nasceu num almoço com pessoas da Fundação César Manrique, o amigo José Sucena e Zeferino Coelho. Nessa altura, o presidente da Fundação César Manrique, José Juan Ramírez, lembrou: "José, não te dás conta mas tens muitas coisas, são um património da humanidade." Ainda não tinha surgido a ideia da exposição, mas eu sabia o que havia aqui em casa. E Fernando Gómez Aguilera reafirmou: "José, tu mesmo és património da humanidade. Pilar, vocês têm obrigação de fazer a fundação para que isto não se disperse, não se vá, não se venda, para que não fique disperso por universidades e que todo o espólio esteja junto, possa ser consultado, possa ser visto na fundação." E depois, José Sucena deu-lhe forma legal."

Num restaurante em Puerto del Carmen, José Saramago tinha sempre mesa marcada. Chama-se Puerto Bahia e serve um Bacallao Puerto Bahia (con aceite de oliva, ajo, gambas). "Esse restaurante em Puerto del Carmen serve sobretudo pratos de peixe e ele conhecia o dono. O Saramago era português e sabia bem o que era isso de fazer um peixe bem grelhado." Numa das paredes há um quadro onde estão representadas as pessoas ilustres que por lá passaram. Entre eles, Saramago. No livro de dedicatórias, o seu editor italiano Feltrinelli escreveu em Setembro de 2010: "Um dia especial recordando José Saramago, com pessoas especiais numa ilha especial."

Um novo livro

No dia da inauguração oficial da Casa José Saramago, Pilar del Río andava de um lado para o outro com uma pasta com as páginas do livro que ele escrevia quando morreu. Como se encontravam em Lanzarote os editores de Portugal, Itália e Espanha e ainda a agente de José Saramago que vive na Alemanha, aproveitaram para ter uma reunião e discutir o que fazer com este inédito. "O texto que ele deixou é relativamente pequeno, são vinte e tal páginas, em livro pode dar umas 40 páginas perfeitissimamente publicáveis. Já as li: são os dois primeiros capítulos de um romance que pode ser publicado assim porque não é uma coisa disforme. O que aliás era típico dele", explica Zeferino Coelho.

Primeiro José Saramago trabalhava a ideia na cabeça durante uns meses e quando se punha a escrever aquilo saía e saía já pronto. Eventualmente depois relia, mudava uma palavra, acrescentava outra, mas coisas de muito pormenor. "Aquilo que existe tem as frases completas e, para quem lê, é um romance do Saramago indiscutivelmente, segundo Zeferino. Tem título Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas. Um dia disse-me: "Encontrei o título, é uma coisa do Gil Vicente, é mesmo isto que eu quero." Agora, são apenas dois capítulos e estamos a ver como é que se pode de alguma maneira completar. Não há nenhuma decisão tomada."

Zeferino Coelho esteve em Lanzarote quatro dias antes de José Saramago morrer. "O processo da doença foi longo e ele resistiu sempre muito. Mas a doença insistia. Foi-o debilitando. Conseguia melhorar mas não conseguia recuperar ao ponto inicial. Estava um tempo muito bom e muito agradável e almoçámos eu, a Pilar e ele nessa varanda. Voltei para Lisboa convencido de que ele uma vez mais iria recuperar. Passados três dias morreu. Acho que morreu feliz. Teve uma vida extraordinária."

Numa das T-shirts que estão à venda na loja com postais, discos e os seus livros em várias línguas onde termina a visita a esta casa, está estampada a frase do único Prémio Nobel da Literatura português: "O fim de uma viagem é apenas o começo doutra. É preciso recomeçar a viagem. Sempre."

A Casa e a Biblioteca José Saramago pertencem agora aos seus leitores, para que a viagem não acabe nunca.



isabel.coutinho@publico.pt

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