Khadafi quis mostrar que manda mas está cada vez mais só

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Manifestante líbio exibe cartaz com caricatura de Khadafi durante os protestos ontem na cidade de Tobruk MARCO LONGARI/AFP

Manifestantes mortos em Trípoli. Ditador promete vitória, filho admite cessar-fogo. Embaixador em Lisboa rompe com regime

O líder líbio Muammar Khadafi quis ontem mostrar ao mundo que na Líbia ainda é ele quem manda, e voltou a aparecer no centro de Trípoli e a apelar à resistência, apesar das notícias que dão o seu poder como confinado a algumas zonas da cidade. Forças do regime dispararam mortalmente sobre manifestantes que pretendiam protestar na capital depois das orações de sexta-feira.

Numa declaração feita a noite passada a repórteres estrangeiros que viajaram para Trípoli, Saif el-Islam, um dos filhos de Khadafi, disse que as forças do regime mantêm combates nas cidades de Misurata e Az Zawiyah, na região ocidental, dadas como libertadas pelos revoltosos, e afirmou esperar que um cessar-fogo seja hoje negociado.

O levantamento na Líbia, que está no seu décimo-segundo dia, já fez inúmeros mortos, ainda que os balanços sejam bastante diferentes: 300, segundo dados oficiais líbios; 640,de acordo com a Federação Internacional das Ligas dos Direitos do Homem; pelo menos mil, nas estimativas que, refere a AFP, circulam nos meios diplomáticos.

"O regime do ditador vive os seus últimos instantes", sentenciou em Nova Iorque o embaixador adjunto da missão líbia nas Nações Unidas, Ibrahim Dabbashi, segundo o qual os mortos são já "milhares, não centenas". A Alta Comissária para os Direitos Humanos, Navi Pillay, referiu também que "milhares" devem já ter morrido e apelou a uma intervenção internacional para protecção dos civis.

Khadafi apareceu na Praça Verde e pediu aos partidários que se preparem para "defender a Líbia??. "Dancem, cantem e preparem-se... É esse o espírito... Vamos lutar e vamos vencê-los", disse à multidão, segundo imagens da televisão estatal, nas quais se viam alguns milhares de pessoas a agitarem bandeiras verdes e retratos do chefe. "Se necessário, abriremos os depósitos de armas para armar todo o povo" contra o "inimigo", referiu também o líder líbio, segundo o qual o povo "ama Khadafi". No final, atirou beijos à multidão.

No seu discurso, o ditador transmitiu uma determinação também expressa numa entrevista de Saif el-Islam à CNN-Turk: "O plano A é viver e morrer na Líbia. O plano B é viver e morrer na Líbia. O plano C é viver e morrer na Líbia", disse.

O analista Tarik Yousef, do Brookings Institute, em Washington, manifestou à Al-Jazira a opinião de que muitos dos que apareceram ontem junto a Khadafi são apoiantes genuínos. "Não conhecem nenhum outro líder. E muitos vão sentir-se perdidos quando Khadafi cair."

"O que impressiona é que ele não falou sobre as cidades já libertadas no país. Foi um discurso em que teve a intenção de mostrar resistência ao que considera interferência estrangeira. Mas mesmo os seus filhos já admitiram que parte do país já não está sob controlo do regime", acrescentou o especialista em Médio Oriente.

Logo pela manhã, horas antes do quarto discurso de Khadafi desde o início da semana, o regime fez promessas de efeito duvidoso: cerca de 500 dinares (quase 290 euros) a cada família para fazer face à subida do preço dos alimentos e aumentos de 150 por cento para algumas categorias de funcionários públicos, noticiou a televisão estatal.

Testemunhos recolhidos pelas agências referiram que opositores ao regime se deslocavam ontem livremente por Trípoli e que algumas zonas estavam fora do controlo dos fiéis a Khadafi. Mas outras informações referiam que as suas forças patrulhavam as ruas e que à volta da capital foi montado um cordão militar, no que seria uma tentativa de evitar a afluência de revoltosos de outras cidades.

A repressão acabou por cair sobre manifestantes que pretenderiam protestar após as orações da manhã. Morreram duas pessoas, segundo a Al-Jazira, sete, de acordo com a Al Arabiya. "Começaram a alvejar as pessoas. As pessoas estão a ser mortas por atiradores", disse uma testemunha à Reuters, referindo-se a acontecimentos junto a uma mesquita numa artéria que conduz à praça central de Trípoli.

Mais deserções

O dia de ontem reforçou as indicações de que extensas áreas do território estão nas mãos dos sublevados. "Percorri de carro os vastos desertos da Líbia oriental, desde a fronteira com o Egipto até Bengasi. Cidades como Tobruk e muitas outras vilas no caminho estão calmas. Só se vêem bandeiras antigas do tempo da monarquia, e nenhum sinal das forças pró-Khadafi", descreveu o correspondente da BBC Kevin Connoly.

Informações da estação britânica referem também que as tentativas do regime para recuperarem Az Zawiyah e Misurata foram repelidas, mas há notícia de combates pelo controlo de uma base aérea próxima desta última cidade. "Uma das unidades especiais, comandada por um dos filhos do coronel, está a tentar fazer recuar as forças revoltosas de uma cidade já bem perto de Trípoli", referiu Jon Leyne, outro correspondente da estação.

Yefren, Zenten e Jadu, na região das Montanhas Ocidentais, cerca de 150 quilómetros a Sul de Trípoli, foram dadas como cidades libertadas pelos opositores de Khadafi. A situação que se vive está a criar novas preocupações: a população tem dificuldade crescente para obter alimentos, combustíveis e medicamentos, alertou o Programa Alimentar Mundial.

Uma série de deserções, que se somaram ao abandono de antigos fiéis em dias anteriores, deixaram ontem Khadafi ainda mais só. A missão junto das Nações Unidas em Genebra decidiu juntar-se em bloco à revolta e passar a "representar o povo líbio na sua totalidade". Os embaixadores em Portugal, em França e na Unesco romperam também com Khadafi. Num comunicado enviado à AFP, o representante em Lisboa, Ali Ibrahim Emdored, referiu-se ao regime como "fascista, tirânico e injusto".

Ao princípio da noite, foi anunciada a demissão de Ahmed Kadhaf al-Dam, conselheiro e primo de Khadafi, que se afastou em protesto "contra a gestão da crise", refere uma declaração do seu gabinete, no Cairo.

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