No comício de Jon Stewart em Washington, a América teve o seu momento zen

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"Ver-vos aqui restaurou a minha sanidade", disse Jon Stewart no palco JASON REED/REUTERS

Depois de quase três horas de comédia, Jon Stewart teve o seu momento de sinceridade. E pareceu o que Obama foi há dois anos: um homem que uniu a América

Quando Jon Stewart explicou o motivo que o levou a realizar um "comício" em Washington, no final de três horas de espectáculo, o público já tinha visto o seu comparsa Stephen Colbert atribuir uma medalha à T-shirt preta justa de Anderson Cooper, repórter-estrela da CNN, o robô da Guerra das Estrelas R2D2 falar em palco - ou seja, proferir uma série de bips - e o Peter Pan cantar. Mas faltavam dez minutos para acabar e o espectáculo estava a atingir, se não o seu momento zen, pelo menos o seu momento de sinceridade.

"Estou muito feliz por estarem aqui, apesar de alguns não saberem muito bem porquê", começou Stewart. Mas foi o seu último suspiro de ironia. O que se seguiu foi um discurso que ecoou o que Barack Obama andou a fazer durante a campanha presidencial, tentando unificar uma América dividida. O humorista Jon Stewart, que entrevistou o Presidente americano na quarta-feira no seu programa, emergiu ontem como um conciliador nacional. "O que é que foi isto exactamente?", perguntou. Não foi um comício para ridicularizar pessoas de fé, esclareceu, nem para olhar com snobismo para o país real, nem "para sugerir que os tempos não são difíceis e que não temos nada a recear". Stewart referia-se aos activistas do Tea Party, o movimento de descontentamento popular e ultraconservador. "Vivemos tempos difíceis, e não o fim dos tempos. E não temos de ser inimigos", disse.

A mensagem de Stewart, admirado e seguido pela esquerda americana, não se dirigia apenas, nem sobretudo, aos conservadores - os que alguns participantes se referiram como "o outro lado". "Não ser capaz de distinguir entre racistas a sério e os membros do Tea Party é um insulto, não só para essas pessoas como para os racistas, que são incansáveis no esforço que é preciso para odiar." Ou ser incapaz de distinguir entre muçulmanos e terroristas. E, no entanto, Stewart sentia-se bem. Porque a imagem dos americanos reflectida pelo sistema político ou pelos media "é falsa". Os americanos, disse, são gente trabalhadora, "pessoas que estão ligeiramente atrasadas para qualquer coisa que têm de fazer".

Para ilustrar o seu ponto de vista, os ecrãs gigantes mostraram imagens da fila de trânsito à entrada do túnel que liga New Jersey e Nova Iorque. Os americanos são pessoas que deixam o carro do lado avançar primeiro. O discurso de Stewart vai certamente tornar-se viral no YouTube, como aconteceu com os de Obama em 2008.

Eles estiveram lá

É, então, isto um comício para quem não vai a comícios, o Woodstock da geração Facebook: um show de comédia ao vivo sem as gargalhadas de estúdio, convidados esotéricos, uma paródia do comício que Glenn Beck organizou há dois meses no mesmo local. Duzentas mil pessoas entupiram o National Mall, o parque cheio de imaculados símbolos nacionais - o Capitólio atrás do palco, o obelisco erigido em honra de George Washington, o Lincoln Memorial no outro extremo -, entupiram o metro de Washington, entupiram as redes de telemóvel. E, apesar da ironia dos cartazes que trouxeram - "Façam cerveja, não guerra", "Se Obama é muçulmano, podemos ter as sextas livres?", e das máscaras de Halloween, pareciam, na verdade, saber por que tinham vindo, mesmo antes de Jon Stewart explicar.

"Há um livro chamado The Assault on Reason [O Ataque à Razão, de Al Gore]. Acho que isso resume tudo. A democracia está em risco. As ideologias estão ao rubro e esquecemo-nos da razão", diz Murray Schmechel, 67 anos, do Nebraska. "Estou aqui porque esta assembleia diz: "Esperem um minuto.""

Mary Johnson, contabilista, 53 anos, veio do Kentucky com o marido - são 10 horas de carro, mas eles levaram dois dias. "O estado da política no Kentucky é tão mau que na semana passada um homem pontapeou a cabeça de uma mulher num comício só por ela ter uma opinião diferente." A mulher, democrata, foi agredida por um apoiante de Rand Paul, o candidato ao Senado do Tea Party. "Isto é uma verdadeira afirmação política", diz Mary, referindo-se ao comício. "É um apelo à razoabilidade."

O casal Rob e Patricia Robson, 71 e 61 anos, veio da Califórnia. Queriam mostrar que apoiam "o lado mais silencioso". O Tea Party, diz ele, "parece ter demasiada imprensa". "É preciso mostrar que existem outros pontos de vista." Rob e Patrícia estão vestidos de Tio Sam e Estátua da Liberdade. Haverá republicanos no público? "É provável. Há muitos republicanos cansados do Tea Party", diz Rob.

Alguns trouxeram as suas causas, como Benjamin Mann, 30 anos, que segura a sua bebé de cinco meses nos braços. "Vim para mostrar que se pode ser responsável e ter uma família, e defender a legalização da marijuana", diz este residente de Washington. "Tenho uma filha, trabalho. Tenho o direito de escolher o que é certo para mim." O estado da Califórnia vai referendar a legalização da marijuana na terça-feira. Para Benjamin, as leis de proibição da droga falharam. "A definição da insanidade é fazer a mesma coisa repetidamente."

E Jon Stewart, o que levou dali? "Se querem saber por que estou aqui e o que pretendo de vós, já mo deram. A vossa presença era o que eu queria", disse ao despedir-se. "Ver-vos aqui hoje e o tipo de pessoas que são restaurou a minha sanidade."

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