"Não passarão, eu apoio Garzón"

Foto
Houve manifestações em várias cidades de Espanha REUTERS/Susana Vera

O "povo de esquerda" desceu à rua. Defendeu o juiz. Recordou os mortos do franquismo. Empunhou bandeiras e lançou gritos de outras causas

Alguns milhares de pessoas participaram, ao fim da tarde de ontem, na capital espanhola, numa manifestação de apoio ao juiz Baltasar Garzón. Barcelona, Valência, Córdova e Jaén foram outras cidades de Espanha convocadas pelas associações de recuperação da memória histórica para saírem à rua a manifestar o seu protesto pelo próximo julgamento do juiz Garzón, acusado de "prevaricação" na instrução de uma acção penal contra os crimes da ditadura franquista.

Em Madrid, a pouco mais de um quilómetro da Praça da Cibelles, ponto de arranque dos apoiantes do juiz da Audiência Nacional, cerca de uma centena de pessoas concentraram-se a favor da Falange Espanhola. A palavra de ordem das associações de memória histórica era "Contra a impunidade do franquismo". A centena de falangistas gritaram "Orgulhosos do passado". As "duas Espanhas" desceram ontem à rua.

"Não passarão, eu apoio Garzón" dizia uma das faixas do arranque do desfile. A frase tem história: remonta ao "No passarán" de Dolores Ibarruri, La Passionária, um grito que "prometia luta e resistência durante a Guerra Civil. Para quem ontem segurava a faixa de fundo negro, a frase parece ter actualidade em 2010. Por isso, eram muitos os que empunhavam uma cartolina rectangular de cor branca com um pedido: "Mais juízes como Garzón."

Derrubar a monarquia

"O Tribunal Supremo, que se prepara para julgar o juiz, é uma vergonha." Com esta frase curta, sem rodeios, Ângela exprime a sua opinião. "De Garzón pouco sei, mas isto do Supremo é uma vergonha", insiste. Ângela ergue, entre as mãos, um cartaz rectangular. Uma foto debotada pelos anos, com um nome: Irma Guerrero.

Ângela, "só Ângela, porque não dou o meu apelido", também não revela a idade. Cultiva o mistério. Mas tem ideias. "Tenho muita energia, para isto e para muito mais, eu não votei a Constituição, porque não acredito na monarquia", diz com firmeza. "Quero derrubar a monarquia, é para isso que aqui estou", concretiza. Faz questão de mostrar a pulseira que faz jogo com uma flor de papel: ambas com as cores republicanas. Ângela não está só.

Há dezenas de bandeiras republicanas com as cores vermelha, amarela e lilás. "Amanhã Espanha será republicana!", grita, punho em alto, uma militante da Corrente Marxista Revolucionária com uma camisa de Che Guevara. Há sorrisos de cumplicidade entre os manifestantes, na sua maioria gente de meia-idade.

E quem era Irma Guerrero?. "Uma menina de Madrid assassinada durante a Guerra Civil, é um morto anónimo, de gente comum", explica Ângela.

Cartazes e memórias

Outras fotos são conhecidas. Há cartazes com Federico Garcia Lorca e Julian Grimau, o dirigente comunista fuzilado pelo franquismo em 1963, quase 30 anos depois da Guerra Civil.

Entre os cartazes distribuídos pelas associações de recuperação de memória histórica um tinha uma foto de um homem de olhar vivo e bigode farto. Por baixo, o seu nome: dr Isaac Puerta Armestoy. "Foi detido em 1936, sabe-se que foi assassinado, mas o corpo nunca apareceu", esclarece o psiquiatra Rafael Roldán, que empunha o cartaz. Roldán explica que Isaac era anarquista, médico e sexólogo, nascido em Vitória, no País Basco. E, apesar de o governo basco ter sido um dos executivos regionais que mais impulsou as exumações dos corpos, de Isaac Armestoy nunca houve vestígios.

Esta é a causa que anima as associações de recuperação da memória histórica. E que motiva a defesa de Baltasar Garzón.

"Ninguém pode compreender que um Estado democrático impute um delito de prevaricação a um juiz que assumiu os princípios da verdade, justiça e reparação das vítimas e quis aplicar em Espanha a doutrina do Direito Penal Internacional", assegura o manifesto lido no final do desfile, nas Portas do Sol.

Almodóvar e os outros

O texto, lido pelo realizador Pedro Almodóvar, a escritora Almudena Grandes e o poeta Marcos Ana, expressa um lamento: "O processo [a Garzón] suja a memória das vítimas do franquismo, despreza a dor dos seus filhos e netos, e condena as aspirações de justiça de centenas de milhares de famílias espanholas."

"É irónico e hipócrita que a Espanha não aplique no seu próprio país os mesmos princípios que já serviram para perseguir delitos similares cometidos no estrangeiro", disse, por seu lado, Reed Brody, da organização de defesa de direitos humanos Human Rights Watch. Uma referência às iniciativas judiciais de Garzón contra, entre outros, o ex-ditador Augusto Pinochet, que perseguiu judicialmente quando este veio à Europa.

"Espanha não pode continuar a ser uma excepção para a justiça espanhola", alertara Pedro Almodóvar.

O juiz Baltasar Garzón anunciou, ontem, que vai interpor recurso junto do Supremo Tribunal para recusar o juiz Luciano Varela. Varela é acusado de parcialidade e interesse directo por ter aconselhado duas das entidades que acusam Garzón - Falange Espanhola e Mãos Limpas - a corrigirem as suas acusações.

Sugerir correcção