Vinte?por dia

Foto

Frederico Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963. O seu próximo livro, Santo Asinha e Outros Poemas, marcará a sua estreia na poesia e será publicado em Maio pela Caminho.

Estávamos a 20 de Fevereiro, era uma tarde chuvosa e faltavam alguns minutos para as sete quando assomou à porta dos artistas do Teatro Nacional de São Carlos um homem de trinta e poucos anos, não muito alto mas espadaúdo; homem cujo rosto tenso espelhava um ar de decepção tão total que quem não soubesse que ele era violinista teria pensado que, no mínimo, o mundo inteiro acabara de ruir.

Calhou por azar que, nessa tarde, estava de serviço o porteiro com quem o violinista espadaúdo mais embirrava: homem azedo e de modos tão desagradáveis que quase podiam ser considerados sintoma de um ódio visceral votado a toda a classe dos artistas, sendo que os músicos da orquestra, mais até que os bailarinos ou os cantores do coro que com eles partilhavam os vários espaços do teatro, mereciam àquele porteiro pequenos gestos de antipatia adicional, como se houvesse da parte dele necessidade de vingar alguma desfeita ocorrida em tempos imemoriais (muito antes do ano que então corria), de que já ninguém além dele se lembrava. Certo era que a resposta a qualquer pergunta que se lhe fizesse soava como agressivo ajuste de contas e, por isso, o violinista espadaúdo (cujo nome, diga-se desde já, era Paulo) achou melhor não lhe perguntar se "aquele rapaz alto" não teria passado antes pelo teatro para deixar algum recado (isso expô-lo-ia àquele olhar insuportável que ele detestava acima de tudo, um olhar carregado de insinuações sardónicas face à natureza do elo que ligaria o violinista a um jovem cuja fisionomia desmentia os seus inacreditáveis vinte anos). Não, pensou Paulo, não lhe vou dar essa satisfação; o melhor será tentar por outra via. E deu por si a pensar naquilo que era objectivamente a pior alternativa, a mais arriscada e perigosa, mas na presente circunstância a única saída. Meteu as mãos nos bolsos, tirou as várias moedas que lá se tinham acumulado, e saiu do teatro para se dirigir à cabine telefónica que ficava mais acima, do outro lado da rua. Era perigoso, claro. Negar isso era escusado. O coração martelava-lhe no peito; sentia a cabeça a andar à roda. Mas ao mesmo tempo sabia que era inelutável, porque tinha de acontecer mais cedo ou mais tarde. Um dia tinha de ser. E esse dia era hoje.

Colocou as moedas na ranhura, marcou o número de casa de Tiago e pôs-se a rezar que, se não fosse o próprio Tiago a atender, ao menos fosse a irmã. Subitamente, as moedas de vinte e cinco tostões começaram a cair, umas atrás das outras. Do outro lado tinham atendido. Infelizmente, não havia dúvida possível quanto à identidade de quem atendera: era a mãe do Tiago. E Paulo, como é evidente, não teve outra hipótese senão repor silenciosamente o auscultador. Sentia as mãos a tremer; percebeu depois que as pernas também tremiam. Em momentos como este, não conseguia parar de dizer a si próprio: és doido, és completamente doido, isto vai dar para o torto... mas sabia também que tais assomos de objectividade face à situação de nada serviam. Os dados estavam desde há muito lançados e o fascínio inicial dera já lugar a outra coisa; dizer que era paixão era dizer pouco, pois ultimamente parecia a Paulo que ultrapassava tudo isso; mais do que paixão, era um destino, escrito algures, talvez muito antes de qualquer um deles ter nascido; um destino que remetia a vida, tal como ela fora antes, para uma categoria desprezível, ficando reduzida à total irrelevância, já que nada contava a não ser aquilo, sobretudo nesse dia, dia-chave de toda a história, dia do tudo ou nada: nesse dia, Paulo tinha a noite por sua conta (deveres familiares, na forma do nascimento prematuro de uma sobrinha, tinham levado a mulher de Paulo a ausentar-se excepcionalmente de Lisboa, levando os gémeos para casa da mãe); e nesse dia de manhã, a seguir à aula de violino, Tiago, muito corado, tinha-lhe prometido que arranjaria tudo em casa para que pudessem dormir juntos nessa noite, ficando combinado que se encontrariam na entrada dos artistas do teatro meia hora antes do início da récita (a ideia era que Tiago assistiria à ópera escondido no fosso da orquestra). Combinação essa cujas perspectivas de concretização pareciam agora goradas.

Só que Paulo não ia desistir do que sonhara; sentiu de repente novo ânimo, nova esperança. Era facto que já passava mais de um quarto de hora relativamente à hora marcada, mas era perfeitamente possível que tivesse ocorrido um percalço qualquer. Porque não abordar o porteiro e pedir-lhe para transmitir um recado ao "rapaz alto", caso ele chegasse depois de já começada a récita? Paulo franziu a boca. Deixar um bilhete ainda seria a melhor solução. Olhou em volta. Sentada num dos bancos da entrada estava a mãe de uma das alunas de ballet, que ficava ali de plantão toda a tarde a fazer croché até que a filha saísse da aula da noite. Era uma senhora que chegava ao teatro carregada de sacos, donde saíam as coisas mais inimagináveis, utilíssimas quando alguém precisava de pregar um botão ou tomar um comprimido para a dor de cabeça. Paulo aproximou-se:

- Por acaso não tem um sobrescrito e uma folhinha de papel que me empreste?

Encantada, como era seu timbre, por poder ser prestável à comunidade dos artistas (o ingresso da filha nessa comunidade era o seu maior desiderato), a senhora remexeu nos seus sacos e retirou um envelope amarrotado, a que juntou uma folha de papel. À pergunta de se precisava também de uma caneta para escrever, Paulo respondeu com um sorriso involuntário (lembrando-se, como passara a ser inevitável desde o dia em que Tiago fizera vinte anos, da acepção em que eles empregavam na sua linguagem privada a palavra "caneta").

- Não é necessário, obrigado. "Caneta" é coisa de que nunca tenho falta. Gasto-as às vinte por dia, pelo menos.

E a senhora, na sua ingenuidade, até sorriu. a

Sugerir correcção