Eles comem tudo?

As mudanças no topo da Caixa Geral de Depósitos indicam que existe uma preocupante e sôfrega tendência para partidarizar todos os lugares públicos

Uma das regras de ouro da democracia liberal é o princípio do governo limitado. Limitado pelas leis e pelos tribunais, mas também limitado pela existência de mecanismos de pesos e contrapesos, limitado por fórmulas que impedem a excessiva concentração de poder e limitado por hábitos não escritos de saudáveis práticas políticas. Uma dessas saudáveis práticas, que não necessitam de ser lei para serem assumidas de forma consensual, é que, mesmo quando um partido dispõe de maioria absoluta, se abstém de ocupar todos os lugares do poder. Por exemplo: durante muitos anos Portugal dispôs de um comissário europeu e de um director-geral na Comissão Europeia; o primeiro era por regra do partido no poder, o segundo do principal partido da oposição. O mesmo princípio se aplicou também muitos anos ao Banco de Portugal e à principal instituição bancária do Estado, a Caixa Geral de Depósitos. Recordemos, por exemplo, que os seus presidentes foram, durante grande parte do mandato de Cavaco Silva, o socialista Rui Vilar e, no tempo de Guterres, o social-democrata João Salgueiro. Havia a preocupação de colocar nestas instituições figuras de craveira que, mais do que representarem o que alguns depreciativamente designam como "bloco central", eram nomes prestigiados que mostravam que, no Estado, nem tudo se reduz aos partidos e às suas clientelas.
As crises recentes na Caixa Geral de Depósitos, ainda durante a anterior maioria, e, sobretudo, a abrupta substituição de Vítor Martins por Santos Ferreira à frente daquela instituição, com o argumento de que o primeiro não tinha a confiança política do Governo, mostram que se entrou por um novo e perigoso caminho. Primeiro, porque a relação entre o ministro das Finanças e o presidente da Caixa Geral de Depósitos não requer "confiança política", antes lealdade institucional e um correcto desempenho do cargo, e Vítor Martins não é acusado de ter falhado nestes dois domínios. Depois, porque a mudança na administração foi acompanhada pela escandalosa e chocante promoção de Armando Vara, um "super-boy" do PS, muito próximo de José Sócrates, e que tinha sido demitido do último Governo de António Guterres após um escândalo de má utilização de fundos públicos. A Caixa, habitualmente poupada a estes jogos, vê agora acumularem-se na sua administração os que têm como principal "carta de recomendação" o seu cartão partidário: antes de Vara, já lá estava e continuará a estar Celeste Cardona, não nos esqueçamos.
A rapidez com que o novo ministro das Finanças acedeu à vontade do primeiro-ministro, substituindo um gestor que o seu antecessor se tinha recusado a substituir, mostra que tinham razão os que viram na substituição de Campos e Cunha e na entrada de Teixeira dos Santos um reforço da disciplina partidária dentro do Governo. Mas o pior é que, com este gesto, Teixeira dos Santos deixa que se instale a ideia de que, para além de ter o cartão do PS, também se comporta como um "yes men" de José Sócrates, o que se revela inquietante se pensarmos que ocupa a pasta das Finanças em tempos tão difíceis e duros.
Depois de uma infeliz lei que partidariza de forma ainda mais clara a nomeação dos directores-gerais, as mudanças na Caixa mostram que há sofreguidões partidárias que parecem fazer jus ao velho refrão de Zeca Afonso: "Eles comem tudo/eles comem tudo/eles comem tudo/e não deixam nada"...

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