1948-2007 Robert Jordan E agora quem pega no legado do mestre do tempo?

Robert Jordan morreu sem acabar de escrever a saga de fantasia A Roda do Tempo. Mas assegurou que o desenlace não ficaria por desvendar. Não queria que os fãs lhe fossem profanar a sepultura, brincou há anos, muito antes de lhe ser diagnosticada uma rara doença de evolução fulminante. Foi "o herdeiro de Tolkien"

a Mais de uma década antes de o realizador Peter Jackson ir filmar O Senhor dos Anéis à Nova Zelândia, numa cidade costeira do Sul dos Estados Unidos nasceu uma saga de fantasia que pouco tardou a ganhar a reputação de "herdeira" do universo de J.R.R. Tolkien. Agora, 11 livros passados, é mais do que claro que O Olho do Mundo, primeiro volume do épico A Roda do Tempo, não foi o início, mas um início.Nem a morte do autor, Robert Jordan, este domingo, antes de conseguir acabar o último volume, foi o fim. Apenas um fim.
"Não há princípios nem fins no eterno girar da Roda do Tempo", diz o escritor no início de cada um dos livros da sua belíssima história primordial, traduzida em 16 idiomas e com dezenas de milhões de exemplares vendidos em todo o mundo.
Robert Jordan - nascido James Oliver Rigney Jr., em 1948, numa família pobre da sulista e histórica Charleston - morreu na tarde de domingo, no Hospital da Universidade de Medicina da Carolina do Sul, na sua cidade natal, um mês antes de fazer 59 anos. Sofria de uma rara doença sanguínea, amiloidose, diagnosticada em Março do ano passado. "O Dragão desapareceu. Travou uma batalha valente contra esta doença terrível. Nunca abandonou a sua fé nem questionou as escolhas de Deus", escreveu um dos seus primos, Wilson, no blog que o escritor mantinha há alguns anos no site Dragonmount (uma das centenas de comunidades online dedicadas à saga A Roda do Tempo).
Progressiva, incurável e com uma elevadíssima taxa de fatalidade, esta doença que ataca os principais órgãos do corpo - no caso de Jordan fez as paredes do coração ficarem mais espessas - levou os médicos a darem ao escritor um prognóstico de quatro anos de vida. Desde então Jordan revelou uma determinação férrea em contrariar aquela previsão. Pretendia "escrever durante mais uns 30 anos".
"Cinco anos, no que os médicos não querem apostar, não são suficientes. Tenho umas quantas promessas por cumprir", afirmou há três meses, enquanto batalhava para terminar A Memory of Light, o volume final de A Roda do Tempo, com publicação prevista nos Estados Unidos para 2009.
Animado por uma momentânea recuperação em Novembro, Jordan fez mesmo uma lista das coisas que queria fazer assim que recuperasse "a força, a coordenação física e algum sentido de equilíbrio": comprar uma Harley, aprender a fazer sky diving, aprender a dançar o tango, a rumba e o cha-cha-cha com a mulher, Harriet, melhorar o jogo de golfe e "ah, sim, terminar A Memory of Light e começar a escrever o resto da história de Mat e Tuon e outros [personagens de A Roda do Tempo], uns cinco ou seis anos passados depois da Última Batalha".
A recta final
No último ano, as entradas de Jordan no blog foram-se espaçando cada vez mais, intercaladas com as que eram feitas pelo primo e, mais ocasionalmente, pela mulher. "Sei que gostariam que vos desse novidades com mais frequência, mas uma vez por mês será tanto quanto é possível. Estou a tentar dedicar todos os momentos livres ao A Memory of Light. E não tenho assim tantos desses momentos agora", explicou em Junho.
Em 2005, depois de sair o 11º volume da saga, Jordan previra que o último livro deveria chegar às 1500 páginas, quase o dobro de cada um dos anteriores, porque tinha "muitas linhas de enredo por rematar". Tinha muita escrita pela frente e terminar a saga era uma prioridade, mesmo anos antes de a morte se lhe anunciar e o obrigar a correr contra o tempo: "Fui avisado que se morro antes de acabar os livros, [os fãs] vão profanar-me a sepultura", brincara numa entrevista à CNN em 2000.
A Roda do Tempo, título em que Jordan se inspirou na mitologia hindu, conta a história da Terceira Era de uma terra de fantasia de múltiplas nações, onde o personagem principal, Rand al"Thor - o Dragão Renascido -, cresce de rapazinho de uma pequena aldeia até se transformar no herói que irá confrontar o Mal supremo e repor o equilíbrio nos poderes místicos. Nesse mundo, onde também há criaturas distorcidas (trollocs e myrddraal e draghkar), mas não elfos, a magia - o Poder Único - partilha muitos dos conceitos de concepção da "Força" de George Lucas na Guerra das Estrelas, passando de geração em geração de forma genética e sendo protegida pelas Aes Sedai, uma sociedade de mulheres poderosas que usam mantos com capuz à laia dos Jedi.
Quando Jordan pôs A Roda do Tempo a girar, tinha planos para contar toda a história em quatro ou cinco livros. Pouco depois não tinha tantas certezas: "Ao acabar O Olho do Mundo pensei que tinha boas hipóteses de o fazer em seis", notou já em 2000. E pela altura em que acabou o segundo volume, A Grande Caçada (com publicação em português em Novembro), pareceu-lhe que teria que continuar sem garantias nenhumas de quando chegaria ao desenlace. Com o avançar da saga, começaram a surgir críticas ao "estilo palavroso" de Jordan, e fãs e críticos ponderavam se o escritor não teria perdido o controlo da história. Mas as vendas continuaram a crescer e o sucesso nunca o abandonou.
Quase todos os dias, nesta recta final em que até teclar no computador era uma tarefa demasiado exigente, Jordan ditava A Memory of Light página a página à mulher. Há duas semanas tudo o que faltava da história foi narrado até ao último acontecimento, numa reunião de família descrita por Wilson como "duas horas e meia de pura magia". Harriet, que é editora literária, tomará a seu cargo, agora, escrever tudo quanto Robert lhe desvendou - um pouco como fez Christopher Tolkien, filho mais novo de J.R.R. Tolkien, na compilação e edição dos milhares de notas manuscritas deixadas pelo grande mestre da fantasia literária, tarefa que levou à publicação póstuma de O Silmarillion (1977), Contos Inacabados (1980) e, já este ano, Os Filhos de Húrin.
Gostos simples
Robert Jordan fez um caminho literário incomum e, muito provavelmente, a escrita estaria longe das suas ideias quando, aos 22 anos - recém regressado da guerra no Vietname - ingressou na reputadíssima Academia Militar da Carolina do Sul, onde se formou em Física. Mas a semente estava lá: fascinara-se pelas criações de J.R.R. Tolkien na Terra-média na juventude e esse fascínio não o abandonou, nem mesmo naqueles primeiros anos de carreira como engenheiro nuclear dos quadros da Marinha norte-americana. Em 1977 dedicou-se em exclusivo à escrita, dando então os primeiros sinais de paixão pela história.
Os primeiros livros - uma trilogia de romances históricos passados na sua cidade natal - foram publicados sob o pseudónimo Reagan O"Neal, no início dos anos de 1980. Seguiram-se-lhe sete histórias da série Conan, O Bárbaro (1982-84) e só depois começou a produzir literatura de fantástico: O Olho do Mundo chegou às livrarias norte-americanas em 1990 - a primeira edição em português foi feita em Agosto.
As origens sulistas, notava Jordan em inúmeras entrevistas, notam-se com clareza nos livros, mesmo se estes se passam num mundo de fantasia. Não é uma questão de localização, mas de voz, "de escolha das palavras, dos ritmos das frases e do discurso", precisaria. O escritor, a quem o diário The New York Times chamou "o herdeiro de Tolkien", gostava de caçar, pescar, velejar, jogar póquer, xadrez e snooker e descobrira, mais recentemente, os prazeres do golfe - hábitos de um típico cavalheiro sulista moderno. E possuía uma profunda fé em Deus, professando a muito liberal Igreja Episcopal.
Como Tolkien (outro homem de fé, mas católico), Jordan era um homem simples de gostos simples. Coleccionava cachimbos e, por brincadeira, costumava posar para as fotografias das entrevistas naquela pose caracteristicamente tolkieniana, de cachimbo preso entre os dentes, com o sorriso traquina de quem diz "eu-sei-que-tu-sabes".
Mesmo nos períodos de maior fragilidade e dor provocadas pela doença - com os medicamentos a inibirem-lhe o apetite e a induzirem-lhe fadiga extrema - Jordan manteve sempre um contacto especialmente próximo com os fãs: mesmo se já não podia participar nas convenções (as que lhe são dedicadas e outras focando o género do fantástico), o escritor sustentava essa proximidade através do blog.
Ali narrou os progressos feitos no novo livro e falava também da evolução da doença, num diário intimista onde misturava os projectos para o futuro com memórias do passado, desde os tempos de juventude em que combateu no Vietname e regressou a casa ileso e condecorado com a Cruz de Guerra e a Estrela e Bronze. Jordan cumpriu ali duas missões como voluntário no Exército norte-americano, entre 1968 (tinha 19 anos) e 1970, durante as quais foi artilheiro de helicópteros.
Ganhou duas alcunhas durante aquele período: Ganesha, o nome do Deus hindu com cabeça de elefante conhecido como Removedor de Obstáculos, por numa ocasião ter conseguido o milagre de fazer explodir um rocket a tiro de metralhadora antes de o explosivo atingir o helicóptero em que seguia; e uma outra de que não gostava tanto, The Iceman - escolhida por um oficial, em referência ao nome dado à morte por Eugene O"Neil na peça The Iceman Cometh, depois de uma missão em que Jordan revelou um enorme sangue frio, um sangue-frio de morte, ao disparar três mil munições sobre um batalhão do Exército do Vietname do Norte que atravessava um rio.
"Estrangulei aquele filho da mãe, enfiei-lhe uma estaca no coração e enterrei-o de cara para baixo num cruzamento em Saigão antes de regressar a casa, porque sabia que ele não sobreviveria num ambiente civil", disse há uns meses. "Acho que ele não volta. Nada dele. Assim o espero. Prefiro ser recordado como Ganesha, o Removedor de Obstáculos."

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