Gorgulho, o esclavagista de São Tomé

Mesmo octagenário e debilitado por uma afecção renal que o obriga a fazer hemodiálise de dois em dois dias, mantém a pose do tribuno que na barra defendia o réu contra acusações ultrajantes. A figura é alta e quadrada. O peso de todo aquele corpo cansa-lhe as pernas. Apoia-se na bengala e teme o dia em que vier a necessitar de canadianas - pelo vexame que essa diminuição física representa para si mesmo.O estilo é o homem. O isolamento é o preço dessa atitude, que paga sem queixumes. Evita as recriminações afectivas e só cede na comoção quando evoca os pais: "Tenho a fotografia deles à cabeceira e há momentos em que, ao olhá-la, choro."A fraqueza é momentânea e logo a conversa deriva para eventos onde é o centro da acção. Bom contador, prefere "deixar cair" uma amizade a perder o efeito da oratória junto do auditório. Nem a família escapa e delicia-se a contar como pôs em ciumeira o irmão mais velho e primeiro chefe de Governo do pós-25 de Abril, Adelino da Palma Carlos. Foi no final da guerra, nos idos de 40, quando a esperança na vitória democrática iluminava os corações oposicionistas ao Estado Novo. O jovem advogado, 30 anos feitos, era figura em foco e dava vistosa entrevista ao "Diário de Lisboa", sobre corporativismo e fascismo. "Pois, a mim ninguém me entrevista. É como se já não tivesse voz", diz Adelino no dia seguinte, ao chegar ao escritório, na Rua da Conceição, em Lisboa, onde, magnânimo, cedera uma divisão ao irmão em início de carreira. "Estava mesmo zangado", enfatiza Manuel João, prendendo a atenção do interlocutor, antes de desferir a estocada final: "A tal ponto que tive que pedir ao Mário Neves [director-adjunto do 'Diário de Lisboa'] que lhe fizesse também uma entrevista." Todos têm direito à sua alfinetada, incluindo Álvaro Cunhal, companheiro de curso e de carteira - chumbou no primeiro ano e foram os seus conselhos que o levaram a ser um bom aluno. Das amizades de juventude só escapa Guilherme da Costa Carvalho, dirigente comunista, recentemente falecido. Uma coisa é ironia, outra a reprovação. Esta mistura-se com o desprezo, evidente, mesmo quando finge escondê-lo. É o caso de Salazar e, por extensão, de todos os que com ele lidaram: "O Armando, que é engenheiro, recebeu um dia o Salazar que foi visitar uma obra que ele dirigia. Quando ouviu o apelido, perguntou-lhe: 'É da família do dr. Manuel João da Palma Carlos?' Olhando-o de frente, o Armando respondeu-lhe: 'É meu irmão.' Acabou logo ali a conversa." Finaliza com uma gargalhada, onde está implícito um gesto de ternura ao irmão Armando e, ao mesmo tempo, um recolocar do outro, o "barra" Adelino, na hierarquia familiar. A história que maior gozo lhe dá contar é a do "oficial Carlos de Sousa Gorgulho, que atirou sobre os avisos 'Dão' e 'Afonso de Albuquerque', em 1936" (contra os marinheiros da Organização Revolucionária da Armada). Os seus caminhos cruzaram-se em 1957, em São Tomé e sente, de algum modo, ter então "vingado" os marinheiros deportados para o campo do Tarrafal. É uma história extrema do colonialismo português. Um dia, ao atravessar o Rossio, foi contactado por um desconhecido que lhe diz: "Tem que partir urgentemente para São Tomé. Há vidas humanas a salvar. Podemos dar-lhe dois contos. Dá para o bilhete de avião. Não temos mais."O seu interlocutor era Américo Espírito Santo e se não fosse a extrema convicção com que falava não o teria acreditado. Era a história de uma população inteira submetida ao esclavagismo. Era verdadeira, constatou quando lá chegou. Ali, o terror e a escravatura andavam de par. Não tinha ninguém à espera, mas depressa se deu conta que o governador Gorgulho sabia da vinda, pois não havia pensão, estalagem ou residência que não tivesse a lotação esgotada. Foi o dr. Simas, um médico que fazia serviço sanitário numa roça, que lhe deu a mão: "Tenho um quarto aqui na cidade. Enquanto estiver na roça, cedo-lhe. E não me peça mais nada."A intimidação não resultou, Gorgulho foi chamado a Lisboa e não mais voltou a São Tomé. "Foi demitido com louvor", escarnece o octogenário, que nasceu em Bucelas no dia 24 de Junho de 1915, quinto rebento numa família de sete filhos (com duas raparigas), que veio do Algarve. O pai, Manuel Carlos, era de Fuzeta, e a mãe, Auta Vaz, de Albufeira. Eram ambos professores primários. Ele, de verbo fácil, era professor em Lisboa e dirigia um jornal em Faro, "Elos". Ela, mais pacífica, representava a harmonia e a organização numa casa onde não havia criadas de fora nem de dentro, mas onde todos os rebentos chegaram à universidade.

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