A retórica de Salazar acabou a conduzir o seu biógrafo político

Foto
DR

O historiador Manuel Loff analisa a biografia política de Salazar de Filipe Ribeiro de Menezes e denuncia-lhe omissões, erros de perspectiva e uma persistente cedência à retórica do ditador. Um texto contundente, que contraria o aplauso geral com que a obra foi recebida

A biografia que Filipe Ribeiro de Meneses preparou de Salazar tem sido tomada como a primeira biografia de produção estritamente académica, por oposição à biografia necessariamente comprometida que Franco Nogueira produziu nos anos 70. Se é indiscutível a dimensão do projecto, não deixa de ser revelador que seja o próprio autor a querer definir o lugar da obra no conjunto da historiografia portuguesa. Esta teria estado «durante muito tempo dominada pelos modelos marxistas e dos Annales» - enorme exagero... -, e, para estes, emitir «qualquer sinal de empatia ou tentativa de contextualizar e "compreender" Salazar seria um insulto às suas vítimas»... O argumento é velho para quem estuda os autoritarismos; Meneses decidiu importá-lo para Portugal colocando-se na confortável posição de quem, ao contrário do que insinua acontecer com os demais, julga não ter uma «opinião forte e feita sobre Salazar» (PÚBLICO, 29.10.2009).

Não creio ser, decididamente, a melhor abordagem de uma personagem e, sobretudo, de um regime desta natureza. A insinuação de que a investigação histórica sobre o Estado Novo tem estado dominada por diferentes formas de intencionalidade política é das mais inconsistentes banalidades que percorre o discurso daqueles que, nos média e no debate político, se sentem desconfortáveis com o percurso que a historiografia tem feito nos últimos 30 anos e que tem ajudado a sociedade portuguesa a confrontar-se consigo mesma e o seu passado recente. É o próprio Meneses que entende que «as paixões políticas esmoreceram o suficiente para que se possa levar a cabo excelente investigação histórica sobre as estruturas e o funcionamento do Estado Novo», reconhecendo que se «[baseou] em muito desse trabalho em curso».

Partindo do excêntrico pressuposto de que «Salazar é caso único entre os "grandes ditadores" do século XX», «na medida em que o seu protagonismo público decorreu do mérito académico» - reconhecendo, contudo, que lhe «foi conferido o título de doutor em leis, por acordo dos pares, mais uma vez sem ter de se submeter a qualquer exame ou escrever uma tese. (...) [O] facto é que nunca teve de produzir um trabalho exaustivo de investigação» -, Meneses desvaloriza a interpretação da ascensão de Salazar ao poder como indissociável da viragem autoritária das direitas e da crise estrutural do sistema liberal, desencadeada na I Guerra Mundial, de cuja engrenagem o ditador português é meramente um pequeno elo. Aqui, como na maioria do livro, o método biográfico sobrepõe-se a uma ponderação mais complexa, mais sistémica, da realidade histórica: ao longo do livro, é difícil saber se é, afinal, de Salazar ou do regime que Meneses fala.

O caso Delgado

A aparente novidade deste livro decorre, lembre-se, da sua categorização como biografia, porque, obviamente, ninguém presumirá que faltarão obras gerais, várias delas muito sólidas, sobre o seu regime e sobre esse período da história portuguesa (da autoria, por exemplo, de Fernando Rosas, Braga da Cruz ou Reis Torgal, ou coordenadas por António Reis ou João Medina). O que é curioso é que Meneses nem as refira. Para ele, umas vezes, Salazar e o regime são a mesma coisa; se Salazar decai, o regime degrada-se (veja-se, por exemplo, a sua discutível interpretação de que só «à medida em que envelhecia [é que] o Estado Novo se convertia naquilo que sempre negara ser: uma ditadura pessoal»; se Salazar reage, o regime revitaliza-se! Pelo contrário, noutras circunstâncias, Meneses acha que «o Estado Novo era, naturalmente, mais do que Salazar». E tais circunstâncias são muito reveladoras da perspetiva do autor. É muito difícil aceitar que, na mesma linha argumentativa, se considere exterior ao ditador e à sua gestão política fenómenos e episódios que «[pesam] fortemente sobre a reputação de Salazar» como o recurso sistemático ao trabalho forçado nas colónias africanas, a fraude nas eleições de 1958 ou o assassinato de Delgado; sobre este, acha o autor, «é preciso um acto de fé [sic] por parte de quem quer que escreva sobre» o assassinato de Delgado, «já que é impossível demonstrar de forma conclusiva o que é que Salazar sabia e quando». No âmbito dos debates internacionais sobre o papel dos dirigentes dos Estados que praticaram crimes políticos, parece perigosamente resvaladiça a preocupação em relevar que quem, como João Madeira, escreveu que «Salazar deu o seu consentimento» à Operação Outono, montada pela PIDE para eliminar Delgado, «não fornece qualquer referência nem invoca provas», como se o investigador não devesse considerar as conclusões a que a justiça portuguesa chegou no julgamento dos assassinos em 1978-81, e que o próprio Meneses cita, ou como se tal raciocínio fosse admissível, por exemplo, perante a ausência de documentos assinados por Hitler a decretar o extermínio dos judeus...

Fica-se perplexo perante o tom com que Meneses sintetiza o pensamento de Salazar, tantas vezes sem se perceber se é o biógrafo a ler a realidade ou se pretende que o leitor tome o que escreve como representando a leitura do próprio Salazar. Não se trata aqui de um mero problema de estilo; é que, no geral, o livro parece querer sintonizar com esse magma vagamente nostálgico que se pressente em vários setores da sociedade portuguesa.

Meneses entende que «a base ideológica do Estado Novo foi-lhe conferida por Salazar», «um democrata-cristão», mas vai eliminando, uma após outra, a democracia cristã, o corporativismo e o fascismo como caraterizáveis do regime, para chegar à desoladoramente superficial conclusão de que «o Estado Novo construído por Salazar era, de facto, relativamente apolítico, preocupado acima de tudo com a sua própria sobrevivência, confundida com o interesse nacional e com a preservação da ordem e da obediência». Se na «retórica de Salazar na década de 1930 encontramos tendências totalitárias no que diz respeito à intenção assumida de alterar a mentalidade do povo», «tal mudança de mentalidade nunca ocorreu e o interesse de Salazar no projecto desvaneceu-se». Em suma, Meneses embarca numa espécie de «pragmatismo» que ele próprio atribui a Salazar: quando o impacto social das projetos políticos é diminuto, presume-se que, afinal, nunca terão existido. «Se até [à II Guerra Mundial, Salazar] era um elemento numa mescla volátil mas generalizada de crenças, que iam da democracia cristã ao fascismo italiano e ao nacional-socialismo, (...) passou depois a ser um solitário na cena internacional. As convicções mais profundas de Salazar (...) não mudaram; o que mudou foram as circunstâncias internacionais e o equilíbrio político interno.» Um regime «apolítico»? É convincente?...

A ideologia e a Guerra

Quanto à «velha questão» de se foi o salazarismo uma variante do fascismo, Meneses é especialmente pouco claro. Depois de socorrer-se de Linz, Payne, Schmitter e a Costa Pinto, insinuar ser pouco «prudente» Lucena (para quem «Portugal era indubitavelmente um regime fascista»), rejeitar Collotti, e ignorar uma série de autores que sustentam o contrário (Rosas ou Villaverde Cabral, para não falar em muitos mais), Meneses repete a velha tese de que «incluir Salazar (...) na grande família "fascista" equivale (...) a esticar o conceito de fascismo a tal ponto que ele perde significado». Contudo, não sendo fascista o Estado Novo, muito menos Salazar, Meneses fala de «elementos fascistas do Governo», admite que «muitos dos futuros colaboradores de Salazar aderiram ao regime» vieram do nacional-sindicalismo, «fazendo-o oscilar nitidamente para a direita», cita o órgão oficial do partido único, o Diário da Manhã, a «"[saudar] os progressos do fascismo no mundo"» e a defini-lo «como a "designação universal das diversas tendências nacionalistas peculiares de cada país"», entre as quais se destacaria o próprio Estado Novo, e sublinha até que «Salazar - e muitos outros em Portugal - se tinha apoderado de muito do aparato do fascismo para sobreviver». Para Meneses, Salazar, afinal, estava era empenhado em «travar a extrema-direita» fascista (designadamente, imagine-se!, durante a Guerra de Espanha), isto é, cedendo aos fascistas para melhor sobreviver, numa espécie de reedição, sob forma mais elaborada, da famosa tirada de José Hermano Saraiva de que Salazar teria sido um antifascista...

Meneses entende que a Guerra de Espanha e a II Guerra Mundial são «porventura os aspectos mais sujeitos a mal-entendidos e mais deliberadamente [sic] distorcidos de toda a sua carreira política», referindo especialmente os que descreve como «rivais e inimigos, comentadores hostis e historiadores subsequentes» que pretenderiam «[provar] as tendências pró-nazis» de Salazar. O resultado é dececionante porque Meneses regressa à velha e inconsistente discussão da aliadofilia vs. germanofilia, como se uma interpretação da política externa portuguesa do período e do posicionamento do Estado Novo perante os distintos projetos de reordenamento internacional se resolvesse em termos de (des)lealdade face à Grã-Bretanha ou vontade em participar na guerra ao lado de Hitler... Meneses surpreende ao dedicar atenção especial ao «estudo da "Nova Ordem"» que resultaria da vitória alemã, temática que eu próprio estudei detalhadamente. Sem nada dizer sobre a adesão ou, no mínimo, a compreensão que Salazar manifesta sobre vários dos princípios estruturadores da Nova Ordem que os fascismos queriam construir, ou o seu elogio do Anschluss e de Munique, de Vichy, Pétain e a colaboração com os nazis, da linha geral europeia para que convergiam os regimes de autoridade, e deixando sistematicamente o ditador à margem da evidente atração das elites salazaristas pelos êxitos da alemães, Meneses omite completamente ofícios e cartas reveladoras trocadas entre Salazar e os seus representantes na capital do Reich entre 1940 e 1942 para se concentrar em cartas trocadas com um intelectual ultraconservador suíço, Gonzague de Reynold, para tentar comprovar «a indubitável aversão de Salazar aos nazis e à sua planeada Nova Ordem». É verdadeiramente insólito que o investigador afirme que tal «aversão tinha de ser mantida secreta. Ninguém (...) podia saber ou suspeitar das verdadeiras opiniões do líder português sobre a guerra». Quando «alguns documentos (...) sugerem o contrário» da sua tese, Meneses despacha a questão dizendo que quem os produziu «não se apercebiam [de] que muitas vezes aquilo que eles tomavam como apoio à causa comum [do Eixo] era a forma de Salazar tentar obter informação sobre os planos dos seus respectivos Governos».

Esta insólita gestão de fontes reaparece, aliás, quando expõe a Abrilada de 1961, de Botelho Moniz, recorrendo às memórias de Tomás, à biografia de Franco Nogueira e... a um diplomata irlandês!...

Prestando pouca atenção às oposições em geral, é no mínimo surpreendente a abordagem que faz de algumas das personagens que, fora do mundo oposicionista à esquerda, têm ainda hoje um peso significativo na memória coletiva que os portugueses têm de Salazar. O castigo de Aristides de Sousa Mendes é interpretado como produto da «prioridade de Salazar» em fazer com que os «tanques alemães» não passassem dos Pirenéus (como se os alemães tivessem protestado contra os vistos passados pelo cônsul...) e resolvido com uma sibilina afirmação: «Cada acção tinha consequências que aqueles que só viam uma parte do todo não eram capazes de prever - e a centralização» - em Salazar? - «era necessária para controlar o fluxo de informação». Humberto Delgado é «desassombrado, brutal e cínico», «insubordinado», e descrito, a par de Henrique Galvão, como um verdadeiro arrivista. É concebível que se possa ainda afirmar ser «impossível chegar a uma conclusão sobre os resultados finais [das eleições de 1958]: é uma questão de fé»?, ao mesmo tempo que se dá credibilidade a fontes internas do regime ou um correspondente estrangeiro que insistiam em que «Tomás contava com o apoio da "maioria dos eleitores do país"». Da carta de 1958 do bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, a Salazar diz que terá sido «indubitavelmente arrogante», revelando o bispo uma atitude de «pai severo» ou «orientador académico», «animado de zelo político».

Onde aporta a análise de Meneses sobre Salazar? Na ideia de que «um sentido de missão pessoal e religioso» teria comandado a sua actuação política. Porque, não o esqueçamos, esta pretende ser uma biografia política. Como em tantos outros momentos-chave do seu livro, é de novo a retórica do próprio Salazar a conduzir o investigador: «o presidente do Conselho disse a Christine Garnier: "Não creio no destino (...). Creio na Providência. É ela que, há tantos anos, me força a um labor contrário aos meus gostos"».

Convincente? Permita-me, então, o leitor que me pergunte porque teve esta biografia tão boa aceitação.

Historiador, Universidade do Porto.A pedido do autor, este texto respeita as normas do Acordo Ortográfico

Sugerir correcção