Os melhores alunos do cristianismo

Cada vez mais os cristãos europeus, católicos, ou de outras comunidades cristãs, como seres pensantes, sabem em que consiste a essência da sua fé, o maior dos mandamentos: "Amai-vos uns aos outros como eu vos amei." Por isso não entendem, ignoram ou lamentam, a insistência em normas eivadas pela sedimentação do tempo, por parte do Vaticano, com toda a relatividade que isso implica

Nestes tempos em que se fala nos desafios de uma nova evangelização, uma frase tem ecoado em vários meios: "é preciso recristianizar a Europa" ou até "é preciso cristianizar a Europa". Que conteúdo poderá ter esta ideia? As populações que vivem na Europa, quer o reconheçam ou não, foram beber nos Evangelhos os seus valores mais preciosos: a liberdade, a igualdade, a fraternidade, a justiça, a paz. É por isso que podemos afirmar, sem qualquer hesitação, que a Europa nunca foi tão cristã como agora. Milhões de europeus, entre os quais eu me incluo, viveram outros tempos mais sombrios e têm memória. Será que a Europa era mais cristã quando admitia a pena capital? Quando não considerava as crianças como pessoas, sujeitos de direitos? Quando as legislações discriminavam as mulheres, na família, no trabalho e na vida social e política, por serem mulheres? Quando não havia sistemas de segurança social, deixando os desempregados e os mais velhos na mais completa miséria? Quando não havia liberdade de expressão? Quando o método para resolver os conflitos era o recurso à guerra? Quando existiam os gulags e os campos de extermínio? Quando havia elevadíssimas taxas de analfabetismo? Quando homens e mulheres podiam ser legalmente hostilizados e até encarcerados, porque eram homossexuais? Quando os filhos nascidos fora do casamento eram discriminados na herança e impedidos de entrar para o Seminário? Onde em muitos países europeus havia sistemas políticos ditatoriais de direita ou de esquerda, que atentavam gravemente contra os direitos humanos? Onde não havia leis de trabalho, permitindo, assim, a mais abjecta exploração de crianças e de adultos, quanto a condições e a salários?Os europeus têm, de facto, ainda uma grande tarefa a realizar. Melhorar as condições sociais dos que cá vivem e conseguir que no resto do mundo se alcancem os níveis de vida presentes neste continente. Ou seja, levar a boa nova, a certeza, a esperança, de que é possível viver com dignidade. É com este sentido da palavra "cristianizar" que será necessário trabalhar com um grande número de países: aqueles onde grassa a corrupção, sobretudo entre os dirigentes, que têm o mais profundo desprezo pelos seus cidadãos; onde morrem, em cada ano, 500.000 mulheres pelo mero facto de estarem grávidas; onde morrem de fome milhões de seres humanos, pelo mero facto de não terem acesso a um salário mínimo ou a uma segurança social básica; onde milhões de raparigas são mutiladas genitalmente, tendo em vista controlar a sua sexualidade em adultas; onde se cortam as mãos aos ladrões; onde se pratica o assassinato anónimo dos que levantam problemas, como Jesus os levantou (quem matou o Bispo Óscar Romero, entre tantos sem nome?); onde as mulheres adulteras são apedrejadas até à morte; onde a ideia de estado de direito é desconhecida; onde a escravidão é bem aceite; onde não há sequer acesso sequer à escolaridade, sobretudo por parte das raparigas; onde os cuidados mais elementares de saúde não existem.
Cada vez mais os cristãos europeus, católicos, ou de outras comunidades cristãs, como seres pensantes, sabem em que consiste a essência da sua fé, o maior dos mandamentos: "Amai-vos uns aos outros como eu vos amei." Por isso não entendem, ignoram ou lamentam, a insistência em normas eivadas pela sedimentação do tempo, por parte do Vaticano, com toda a relatividade que isso implica.
Sabem que o que é importante é serem responsáveis pelo nascimento e pelo cuidado dos seus filhos, ao longo da vida e que todos os métodos contraceptivos, quaisquer que eles sejam "iludem a natureza". Por isso os utilizam em total boa consciência. Sabem que é obrigatório, por imperativo moral, ajudar a diminuir a incidência do HIV-sida recorrendo, também, à promoção do uso do preservativo, não como remédio milagroso, mas como parte importante de uma política de prevenção. Sabem que a exclusão das mulheres dos ministérios ordenados é uma contradição gritante face ao valor da igual dignidade de todos os seres humanos, criados por Deus. Sabem que o casamento não é incompatível com o serviço do próximo, ou seja não percebem qual a mais valia da imposição do celibato obrigatório aos padres católicos. Sabem, ainda, que um processo participativo na escolha das autoridades civis ou religiosas é sinal de maturidade e civilização.
É este o desafio que a instituiçãoIgreja Católica tem que enfrentar. Ao fazer acusações de relativismo moral, e mostrar descontentamento connosco, não estará esta a afastar precisamente os seus filhos mais obedientes, aqueles que concretizaram com alguma perfeição a mensagem evangélica embora, em muitos aspectos, com grandes falhas? São antes estes que estão a rejeitar o relativismo moral, na verdadeira acepção da palavra. Como bons alunos que são, sabem que na vida terrena nada jamais está adquirido, e que é sempre necessário procurar fazer mais e melhor. Por isso, não aceitam pôr em causa os valores que, em aliança com os seus irmãos de todas as confissões (ou de nenhuma), com tanto esforço, conseguiram transpor para o seu dia-a-dia. Valores que conseguiram integrar nas instituições políticas e sociais europeias, tendo em vista a dignidade terrena de milhões de pessoas. Investigadora e membro do movimento internacional Nós Somos Igreja

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