Há cruzes e cruzes

Há em Portugal 74 "Cruzes do Amor". A região do Douro Litoral vai à frente, com 20 já erguidas; segue-se Trás-os-Montes e Alto Douro, com 12; a região minhota com dez e a Beira Alta com sete; a Estremadura tem cinco e o Baixo Alentejo quatro; duas na Beira Litoral, duas no Alto Alentejo e duas no Algarve; no Ribatejo há só uma e na Beira Baixa não há nenhuma. São cruzes metálicas com 7,38 metros de altura, levantadas em vários países para satisfazer um pedido de Jesus à vidente Madalena Aumont na localidade francesa de Dozulé. Diga-se que estas dimensões são uma cedência à incredulidade da Igreja. O desejo primeiro da visão era uma "Cruz Gloriosa" com 738 metros de altura.O que se perdeu em altura ganhou-se em quantidade. Sobretudo agora. Pela multiplicação contínua de um modelo familiar de 73,8 centímetros há cruzes para todas as bolsas. Difundida pelas "Testemunhas da Cruz", que estão representadas em Portugal pela Fraternidade Missionária de Cristo Jovem, com sede em Famalicão, a "Cruz do Amor" destina-se a livrar-nos de um tremendo castigo divino - como jamais houve desde o Dilúvio - que se vai abater sobre o mundo antes do final do século. Salva-se quem conseguir colocar-se sob a protecção dessa cruz especial.Segundo Carlos Dias - de quem recolhi algumas informações (PÚBLIC0, 6/2) -, em torno da metálica Cruz do Amor levantada junto da Igreja de São Matias, no Baixo Alentejo, surgiram alguns problemas. Estão a favor os paroquianos, o pároco e um teórico e activista do movimento, o ex-subsecretário de Estado da Cultura do Governo de Cavaco Silva Sousa Lara, prometendo bordoada naqueles que tentarem impedir que sejam erguidas as cruzes metálicas de 7,38 metros. Contra, por razões de ordem estética, está José Falcão, director do Departamento Histórico da Diocese de Beja. O bispo, apanhado de surpresa, pondera a questão, como é do seu dever.Do ponto de vista estético, não há muito a dizer. As referidas cruzes só acentuam a regionalização do imperante mau-gosto da expansão urbana. Servem para continuar a crucificação da paisagem e dos olhos. Tirando o Alentejo, em muitas localidades, o que começa a destoar são os antigos conventinhos e ermidas que reforçavam a beleza sagrada da natureza.Também não são muitos os casos em que a gente da Igreja com responsabilidade - depois do divórcio do século XIX entre criação artística e catolicismo - tenha apostado "no génio", como imploravam, nos anos 40-50, os padres Coutourier e Regamey, da revista "L'Art Sacré", ao convocar Le Corbusier, Matisse, Manessier, Rouault, etc. para a expressão do sagrado. O pároco do Marco de Canaveses, ao optar por Siza Vieira para a concepção da igreja paroquial, provou que essa aposta é de resultado garantido. Os responsáveis por São Bento da Porta Aberta optaram pelo desastre previsível. Nem a irremediável desfiguração do Sameiro lhes serviu de alerta! Pelo que saiu na imprensa, Fátima continua com dificuldades para encontrar o caminho da sua redenção estética.O citado padre Coutourier, ao escolher o arquitecto Corbusier para uma basílica subterrânea na montanha da Sainte-Baume, que não se realizou por falta de autorização eclesiástica, escrevia ao padre Regamey: "O mais importante é a possibilidade de uma grande obra inteiramente pura, sem nenhuma concessão. No nosso tempo, essa é uma das maiores caridades que podemos fazer, por causa da arrepiante baixeza, da escandalosa vulgaridade de tudo o que se faz nestes domínios... Há uma sórdida miséria espiritual para a qual - não podendo nós remediá-la - precisamos, pelo menos, através de obras inatacáveis, de encontrar algum contrapeso."A condenação de Jesus Cristo à pena capital por crucificação não é da ordem da estética. É um crime de terror bárbaro. Um cristão não aceita que um escândalo para a cultura judaica e grega seja reduzido à simbologia cósmica da cruz, a uma simples representação espacial do mundo contra o caos. Nessa harmonia luminosa e fria desaparece o crucificado, a desfiguração do homem! Para dourar o crime não se pode fazer da cruz um tecido de rosas. Também não podemos reduzir Cristo crucificado a uma chave interpretativa, a uma lei do mundo, como se Jesus fosse apenas a ilustração concreta de um dado geral: sempre houve e haverá crucificados... Na cruz de Cristo vive uma tal resistência às interpretações razoáveis que nunca as teologias do Novo Testamento a conseguiram vencer. Cada um dos seus paradoxos narrativos e explicativos serve apenas para engendrar novos paradoxos e novas interrogações (cf. 1 Cor 1-2; 2 Cor 5, 11-21). Mas se um salvador crucificado era inconcebível, o mal moral é inescrutável. Não há medida para avaliar o sofrimento e a morte infligidos aos inocentes. Nunca serão um meio que Deus ou os homens possam usar para salvar o mundo.Jesus, o inocente torturado, morreu abandonado ao "poder das trevas" (Lc 22, 52). Para quem acredita que Jesus é o Verbo de Deus feito "carne", no crime da cruz, Deus e o homem perderam a voz e a face. Ficam as perguntas: que misteriosa e profética história germinava nessa loucura para que nela se cumprisse a revelação da infinita beleza do amor? De que revisão do passado e de que imaginação do futuro precisamos para vencer hoje a violência que cresce por toda a parte? Respostas convencionais matam a Quaresma cristã.

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