A nova "Pax Americana"

1. Nos escombros da guerra já há quem anuncie uma nova era nas relações internacionais. Entre nós não faltam os arautos do fim do sistema onusiano erigido em 1945, e a sua substituição por algo que há-de vir. Aplaudem o unilateralismo americano, proclamam o fim de ciclo da ONU, falam de revolução no sistema instituído. Entrementes, vive-se um tempo de anarquia, num espaço sem lei porque a ordem internacional actual caducou. A crer nesta visão, atravessamos um hiato jurídico, em que cada um define a seu bel-prazer as condições do exercício da força bem como a natureza das ameaças que o justificam. Assim, não só os Estados Unidos, mas também quaisquer outros Estados se podem prevalecer da nova doutrina da guerra preventiva.

2. Se todavia aplicarmos a esta guerra as regras internacionais (ainda) vigentes não deixamos de chegar a conclusões curiosas. 1ª: a coligação aliada desencadeou um ataque armado contra o Iraque na madrugada do dia 20 de Março, não tendo sido esse ataque em legítima defesa, pois nenhum dos Estados da coligação foi atacado pelo Iraque, e esse ataque ocorreu sem ter havido autorização expressa ou implícita para o uso da força pelo CS da ONU. Logo, foi cometido um acto de agressão pelos Estados da coligação, violador do art. 2.º, n.º 4 da CNU, norma imperativa que proíbe o uso da força. 2ª: o Iraque ao usar a força para repelir o ataque aliado agiu de acordo com o direito internacional. O art. 51.º da CNU confere-lhe o inerente direito de legítima defesa por ter sido objecto de um ataque armado. Paradoxal, no mínimo, concluir que a guerra foi ilícita para os americanos e lícita para o regime iraquiano.

3. A risível resistência do exército iraquiano suscita algumas interrogações. Será que o Iraque era deveras uma ameaça à paz e segurança internacionais? Se tinha arsenais imensos das tão perigosas armas de destruição em massa, porque não foram utilizadas? Onde estão os incontáveis soldados da Guarda Republicana? Mortos? Disfarçados de civis? Em Bagdad a resistência foi quase nula. Da força aérea iraquiana não se viu um avião, das possantes divisões de blindados chegaram-nos vagos rumores, dos temíveis mísseis restavam os poucos, velhos e desorientados Scud que sobejaram da guerra do Golfo. Era este o todo-poderoso exército de Saddam!

4. Depois de terem caído por falta de evidências, um por um, os argumentos para atacar o Iraque, George W. Bush, por fim, limitou-se a anunciar que visava a libertação do povo iraquiano da opressão do regime de Saddam e a instauração de uma democracia. Se for coerente com o seu discurso, e aproveitando a colossal força militar no terreno, pode iniciar a cruzada contra as teocracias da região, começando por libertar o povo iraniano do fundamentalismo dos Ayatolas (e livrar-se de mais um dos regimes do "eixo do mal"), resgatar o povo saudita da tirania da família Fahd (um dos pilares financeiros da Al-Qaeda), e visar ainda a Síria (de quem se diz ter infiltrado armas no Iraque). Em seguida, desloca as forças para a Península Coreana e ataca a Coreia do Norte, libertando o mundo da ameaça das armas nucleares coreanas e ao mesmo tempo salvando o povo da cruel ditadura de Kim Jong Il (bem mais cruel para a população que a iraquiana). E por aí fora, até o mundo estar livre de todos os regimes que oprimem os seus povos.

5. Para os que reconhecem a legitimidade da acção militar unilateral para libertar um povo de um regime ditatorial, então, temos uma nova ordem internacional. Uma ordem ditada pelo poder bélico norte-americano, e assente na ideia da nova "Pax Americana" levada aos quatro cantos do mundo, se necessário pela força. Basta ler o Relatório "National Security Strategy" de Setembro de 2002, para perceber os ventos de mudança na política externa americana. São palavras de Bush: "Defenderemos a paz combatendo terroristas e tiranos. (...) A humanidade tem nas suas mãos a oportunidade de fazer triunfar a liberdade sobre esses inimigos. Os Estados Unidos aceitam a sua responsabilidade de liderar esta grande missão". O Presidente americano considera-se, assim, incumbido de uma missão sagrada, a de libertar o mundo dos tiranos e a de levar aos povos oprimidos as virtudes da democracia. Este messianismo "bushiano" não augura nada de bom para o futuro do mundo. Nos próximos tempos novos conceitos irão fazer escola como a paz pela guerra e a libertação pela ocupação. E como democracia é sinónimo de paz, há que alçar a direito a intervenção democrática. Que futuro terão as democracias impostas do exterior, forjadas na guerra e manchadas de sangue?

6. Em Belfast, Bush remeteu a ONU a um papel mínimo ("vital" no seu entender!) de fornecimento de medicamentos e comida à população. Não quis entregar o pós-guerra à ONU, o que permitiria salvar a organização e, ao mesmo tempo, conseguir uma legitimação moral, ainda que a posteriori, da intervenção. Não, os interesses económicos da reconstrução (compromissos assumidos) exigem uma administração de transição americana. No terreno a guerra está ganha, contudo só agora é que verdadeiramente os trabalhos de Bush vão começar: a reorganização política do Estado (um mosaico de etnias, tribos e a ancestral rivalidade xiita/sunita), a autodeterminação dos curdos (contra o ódio turco) e, "last but not the least", a prometida criação de um Estado palestiniano (contra a política de Sharon).Gabinete de Estudos Internacionais da Universidade Católica Portuguesa

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