A inveja

A inveja pode ser lida como uma forma de expressão da pulsão de morte, uma vez que a sua existência em larga escala não transforma, não elabora nada da própria pessoa ou dos outros: apenas se apropria e extingue

"Oque será a inveja?António (10 anos) É uma pessoa querer uma coisa que outra pessoa tem e querer ainda melhor.
E quem é que será que sente inveja?
Bruno (9 anos) As pessoas que não têm coração.
Se vivêssemos sempre com inveja, como seríamos?
Bruno Maus.
António Não tínhamos amigos.
Carlos (11 anos) Uns autênticos homens das cavernas."
José Gil escreveu "Portugal Hoje: O Medo de Existir". É professor catedrático de Filosofia na Universidade Nova de Lisboa e foi recentemente considerado pela revista "Nouvel Observateur" como "um dos 25 grandes pensadores de todo o mundo" e deu uma brilhante entrevista à Pública onde afirma que "em Portugal a inveja não é um sentimento, é um sistema". Acrescenta ainda que a sociedade portuguesa é paranóica e vive alimentada pelo medo: "o medo de experimentar, pelo medo do que irão dizer de nós", no que demonstra ser uma construção negativa da nossa identidade individual e social que, para funcionar num registo oposto, deveria assentar numa boa qualidade de relações afectivas e emocionais desde os tempos iniciais da vida.
De verdade, a segurança relacional, a que permite que uma pessoa olhe para si sem medo do que é, ou ainda daquilo que acha que aparenta ser, é uma construção da infância e só a adquire quem foi querido pelas suas coisas boas e contido e ajudado nas suas partes piores ou negativas. Implica uma cultura social e familiar de respeito e protecção à infância e à adolescência que ainda é raro conseguir-se, depois de muitos mil anos de desprezo, humilhação e ignorância sobre a importância dos primeiros tempos de vida.
Daí que José Gil acrescente ainda que "a nossa sociedade é infantil", no sentido de imatura, inconsistente, frágil, "mas sem o brilho das crianças", porque essas, quando conseguem manter a segurança e a alegria que lhes são particulares, têm de facto uma luz inimitável.
A inveja faz parte do desenvolvimento psíquico individual, embora os problemas possam surgir quando uma inveja normal, estruturante, ligada a uma identificação positiva do que é invejado, se transforma num afecto dominante na estrutura psíquica das pessoas, adquirindo uma dimensão verdadeiramente patológica. É claro que, essencialmente, tal só surge quando existem falhas graves e mantidas nas boas relações afectivas dos mais novos com quem deles cuida, ficando as crianças e os adolescentes (e, depois, os futuros adultos) sem capacidade de, pela ausência do modelo dos adultos, a integrarem, conterem e transformarem.
A inveja patológica demonstra o desejo de posse de algo, só existente pelo sentido de ausência, de perda, em que o bom é projectado para o que é do outro, sendo o mau posto por inteiro no próprio. A inveja pressupõe então um desejo de posse para a aniquilação ou destruição do que é invejado e, segundo interpretações da psicologia clássica, pode ser lida como uma forma de expressão da pulsão de morte, uma vez que a sua existência em larga escala não amplia, não transforma, não elabora nada da própria pessoa ou dos outros: apenas se apropria e extingue.
No momento actual da nossa sociedade, o livro e a entrevista de José Gil são de uma importância extraordinária, pois alertam de uma maneira muito perspicaz para os riscos sociais e individuais que todos vivemos. De uma maneira ou de outra, alerta para aquilo em que nos podemos tornar quando crescemos e nos formamos segundo modelos de relações pouco saudáveis, que não só não desenvolvem o melhor das nossas crianças, como as transformam em futuros adultos pouco felizes, rectos e justos. Ao não destacar o prazer de estar e se relacionar com os outros numa base segura, livre e de confiança, desenvolve muitos sentimentos paranóicos, como o mesmo autor também destaca, naquilo que ele próprio designa por uma "transferência psicótica".
Por isso, as nossas crianças e adolescentes precisam de ser olhadas de uma outra maneira. Precisam de alguém que goste delas, que de uma maneira equilibrada, continuada, previsível, lhes desenvolva padrões de ligação seguros, que as deixem confiantes em si próprias e no mundo que as rodeia. É esta a base da normal vivência psíquica, onde, quando tudo corre pelo melhor, há um mundo interior que deseja conhecer, que tem gosto em descobrir, que sonha agir na realidade o que de melhor sente ou pensa. Só pode haver pensamento depois de uma pessoa comunicar com outra e de essa comunicação ser emocionalmente gratificante, e isso molda-se desde os primeiros tempos de vida e, continua-se depois, vida fora, pelo que as crianças encontram no mundo das relações extrafamiliares, da escola, das comunidades, da sociedade. José Gil alerta para a importância "de um fora", no sentido da necessidade de uma relação com os outros e suas realidades feita de uma forma rica e plural. Em Portugal, hoje, "partimos sempre do princípio de que o que vão dizer de nós é negativo, desvalorizante. Vão-nos decerto criticar. Isso cria um medo que paralisa", acrescenta o autor. E, de verdade, se olharmos bem à nossa volta, não é isto do que mais damos às nossas crianças e adolescentes?
Assim, não é difícil dizer que há uma inveja à solta que neutraliza, como teia de uma aranha invade e prende, engolfa a sua presa, torna-a submissa, e o tempo deixa de correr, porque o espaço se torna imóvel, ou então, mata-a, fá-la desaparecer e na teia não resta nada senão um lugar vazio para quem vier a seguir. Há uma inveja à solta que não é de agora, é antiga, vem de tempos imemoriais, é infantil porque é tecida num passado erguido num bordado de relações que aniquila, apaga, ao invés de expandir a luz que cada um tem, a parte melhor que dá ou recebe dos outros. É uma erva daninha essa inveja que cresce sem que ninguém dê por ela, rasteira, miúda, mas obsessivamente agressiva, em muitos instantes mortífera, capaz de alastrar para o terreno à volta só para que nada mais possa crescer, uma espécie de bruxa que se zanga sempre que o espelho a não confirma. Inveja, coisa ruim que acontece muitas vezes sem que o sol a conheça, engendrada na noite escura dos pesadelos, inveja mercenária de quem não se suporta, de quem não ama a outro ou a nada que não ele. Inveja desejo de posse, afinal, parte que se apropria e extingue pelo simples prazer de nada ver, pela profunda tristeza de não conseguir ser.
Contra a inveja, uma só certeza - o poder amar, a vontade de crescer, o sonho de uma criança, a vida pura, partilhada, o gosto de entender que uma boa parte de nós, sem o outro, não é nada, e com ele será tudo.
Para que se possa viver sem medo de existir. Pedopsiquiatra

Nota: Por lapso, na última crónica referimo-nos ao livro "The Curious Incident of the Dog in the Nightime" como não estando editado em língua portuguesa. De facto, está publicado pela Presença (5ª edição), sob o título "O Estranho Caso do Cão Morto". A não perder, por isso!..

Sugerir correcção