Ensino público, ensino privado - Visão dicotómica ou visão integradora

Em mais um dos seus frequentes artigos sobre o ensino e, agora, a propósito do artigo do professor Marçal Grilo sobre a Universidade Católica publicado há dias no "Diário de Notícias", veio de novo o professor Vital Moreira defender, com o brilho que se lhe reconhece, a sua influente tese sobre a dicotomia entre o ensino público e o ensino particular e cooperativo, em artigo publicado neste jornal, no passado dia 22.Procurando rebatê-la, insurge-se o ilustre professor contra a "desafiadora tese" daqueles que entendem que a natureza pública do serviço de educação é independente da natureza pública ou privada das escolas ou da respectiva entidade instituidora, como parece ser o ponto de vista do professor Marçal Grilo.Cada uma das teses tem, naturalmente, os seus seguidores e defensores. Ponto é que na defesa de qualquer delas nada seja omitido, por forma a que se possa considerar esclarecida a opinião pública que uma e outra pretendem, ao fim e ao cabo, formar ou influenciar.A tese do professor Vital Moreira é o sustentáculo do discurso dos defensores da educação estatal, daqueles que, apoiando-se na letra do artigo 75º da Constituição e deste fazendo uma interpretação isolada, dizem ser obrigação do Estado criar e administrar uma rede pública de ensino que cubra as necessidades da população, sem se darem conta de que, se este fosse o imperativo constitucional, então outra não seria a função do ensino particular e cooperativo senão a de ser um ensino supletivo do ensino público, conclusão que, contudo, envergonhada e contraditoriamente, os defensores da educação estatal não subscrevem.Trata-se de uma concepção ideológica acerca do papel do Estado na educação, que é conhecida, que tem seguidores influentes e que tem tido acolhimento na mais recente produção legislativa, designadamente daquela que respeita ao ensino superior, como é o caso da lei de organização e ordenamento do ensino superior e dos anteprojectos dos diplomas sobre o regime jurídico da criação, suspensão e extinção de cursos do ensino superior e sobre o estatuto do ensino superior particular e cooperativo.É, no entanto, uma tese que não pode continuar a ser defendida com base no dispositivo constitucional, especialmente depois da revisão constitucional de 1982, se não mesmo antes, após a aprovação pela Assembleia da República da lei de bases do ensino particular e cooperativo (Lei nº 9/79, de 19 de Março) e da lei da liberdade de ensino (Lei nº 65/79, de 4 de Outubro), ambas aprovadas com o voto favorável do PS, PSD e CDS e em cuja defesa o PS assumiu grande protagonismo. Leis que deliberadamente eliminaram o carácter supletivo do ensino particular e cooperativo, consagrando inequivocamente as liberdades de aprender e ensinar, das quais decorrem o direito de criação e manutenção de escolas não estatais e o direito de escolha da escola por parte dos pais e dos próprios estudantes quando adultos.Mas não se ficam por aqui as contradições dos paladinos da escola estatal. Segundo estes, o reconhecimento das liberdades de aprender e ensinar não colide com a preferência do Estado pela escola pública, porque o ensino particular e cooperativo é uma liberdade para todos os que não quiserem frequentar as escolas do Estado, desde que estejam dispostos a pagar o preço dessa mesma liberdade.Liberdade paga não é liberdade. Desde logo, porque nem todos a podem pagar.Trata-se de argumentação retirada do discurso daqueles que sustentam a primazia dos chamados "direitos sociais" sobre os direitos, liberdades e garantias fundamentais, até há bem pouco tempo designados "direitos burgueses", e a obrigação do Estado de assegurar a realização daqueles através da criação e manutenção de serviços públicos a esse fim destinados.Não deixa, no entanto, de ser significativo que sempre se invoque o artigo 75º da Constituição para fundamentar a doutrina da escola estatal se esqueça ou ignore o artigo 43º da mesma Constituição, este inserido em sede de direitos, liberdades e garantias fundamentais, logo assistido de força jurídica reforçada em face do artigo 75º, bem como se esqueça ou ignore os artigos 1º e 2º da já invocada Lei nº 9/79 e os artigos 54º e 55º da lei de bases do sistema educativo.Não é legítimo continuar a explorar eventuais ambiguidades do texto constitucional, resultantes do carácter compromissório de muitas das soluções nele vertidas, para vir em defesa do primado da escola pública estatal, sobretudo depois da revisão constitucional de 1982, do mesmo modo que não é para levar a sério a tese de que as famílias e os estudantes, quando adultos, têm a liberdade de optar pela escola não estatal, se estiverem dispostos a pagar o custo do ensino nesta ministrado, assim se reconhecendo como legítima uma discriminação dos cidadãos em função das suas opções, ainda quando estas correspondem a direitos com consagração constitucional.O que é certo e indiscutível é que incumbe ao Estado assegurar a todos os cidadãos as condições para que possam exercer o seu direito à educação, sem que isso signifique que o exercício deste direito tenha de acontecer na escola pública estatal. Coexistindo o ensino público e o ensino particular e cooperativo, sem que a este possa ser atribuída uma função supletiva daquele, o que a Constituição impõe ao Estado é que assegure as condições de harmonização dessa coexistência, garantindo aos cidadãos a efectiva fruição da liberdade e da igualdade no exercício do direito de escolha da escola ou via educativa.A importância do debate não releva da questão da distinção entre o ensino público e o ensino particular e cooperativo, questão que, por certo, nunca é demais aprofundar. Releva, outrossim, da necessidade de fazer valer princípios e soluções que afastem de vez a discriminação dos cidadãos em função da sua escolha por um ou por outro daqueles ensinos.E não releva apenas de questões de natureza jurídico-constitucional; releva também de outras questões, como sejam a eficiência e a eficácia económica e social do ensino público "versus" ensino particular e cooperativo. Mas isto são contas de outro rosário que ficam para outra vez.*presidente da direcção da APESP (Associação Portuguesa do Ensino Superior Particular)

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