Sustentabilidade e cozinha de fusão

Um exemplo muito claro de como a racionalidade ambiental é, de maneira geral, racionalidade económica.

Tinha uns tocos pequenos de alho francês que seria um desperdício deitar fora, de maneira que foram para o congelador à espera de oportunidade.

Calhou-me um dia destes assegurar o jantar, gastando o mínimo de tempo possível, de maneira que lá foram umas batatas a cozer num caldo onde cozia uma chouriça do talho do Amadeu Florindo, Oliveira de Frades ou Pinheiro de Lafões, que recomendo vivamente).

No fim do jantar, tinha o caldo de cozedura, e uma sobra pequenina da chouriça, para além de umas batatas. Decidi que iria aproveitar as batatas num aioli, para uns palitos de cenoura, à conta de entrada de um jantar mais apifarado que estava aprazado cá para casa.

Quanto ao resto, lembrei-me do Amorim Girão, a escrever sobre Alhões, na serra de Montemuro: “Quando nos meses mais frios a camada de gêlo cobre o solo, e a hortaliça quási desaparece, vão então arrancar da terra êsses alhos, que servem admiravelmente para o caldo e para cozinhar o feijão com a orelheira”.

Achei que os troços de alho-porro – Carlos Aguiar disse-me, se não estou em erro, que o alho-porro seria uma das duas únicas plantas, que comemos habitualmente, a ser domesticada a partir da Península Ibérica, não percebo por isso porque lhe chamamos francês – deviam servir “admiravelmente para o caldo” e ligar com o restinho da chouriça.

Um fundinho de azeite a aquecer, o alho-porro cortado em juliana a estrugir e, depois, caldo em cima, com o resto da chouriça em farripas.

Tinha estado a ler “Através dos Campos”, de José da Silva Picão, e lembrei-me da base da alimentação dos trabalhadores, em Santa Eulália, Elvas, no virar do século XIX para XX: o marrocate, pão de centeio que os trabalhadores migavam para os alguidares onde o abegão ou o cozinheiro despejava um caldo de legumes, ou mesmo só uma água temperada, menu de todos os dias, de manhã, à tarde e à noite.

Como tinha restos de pão de centeio, com alguns dias, achei que o caldo de alho-porro da Serra de Montemuro, adubado com a chouriça de Lafões, até casava com os velhos “marrocates” alentejanos. Ficou um almoço de truz.

Como qualquer pessoa que cozinha sem talento, eu sentia-me seguro com um conceito de qualidade que considera repugnante o que não sabe aproveitar: cabeças, espinhas e pele do peixe, pés de porco, cascas de legumes e todo esse lixo.

À medida que nos meus projectos, sobre alimentação e gestão da paisagem e da biodiversidade, vou assistindo a mais e mais sessões de cozinha com António Alexandre (e Luís Jordão), e o vejo aproveitar os talos das couves ou das nabiças, a cozinhar bolotas, a falar do aproveitamento do peixe seco e de muitos outros produtos desvalorizados, vou percebendo a quantidade de recursos que deitava fora, por pura ignorância e incompetência.

Calculo que eu não seja o único e, mais importante, admito que muitos cozinheiros e gestores de restaurantes, em especial dos restaurantes de diária, ou cantinas, que vivem de controlar custos de produção e servem a maioria das refeições que são vendidas no país, estejam, como eu, afeitos a uma cozinha de facilidade, pouco atenta às variações da época do ano e aos localismos, produtora de imensos desperdícios.

Aprendi com o António Alexandre – tenho consciência de que nem todos podem chegar a esse nível de excelência e criatividade – que um bom investimento na sustentabilidade seria qualificar estes milhares de trabalhadores da restauração, incluindo cantinas, quer públicas, quer privadas.

Posso estar enganado, mas o que tenho visto leva-me a estar convencido de que o investimento em capacidade, conhecimento e inteligência culinária (e nem falo de eficiência energética), seria um poderoso instrumento de sustentabilidade ambiental, económica e de gestão do nosso território.

Um exemplo muito claro de como a racionalidade ambiental é, de maneira geral, racionalidade económica.

 

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