Quanto valem os nossos telemóveis?

Cada telemóvel contém em média 300mg de prata e 50mg de ouro. Por esta razão apenas, um telemóvel vale cerca de um euro.

O telemóvel (desde os básicos dumb phones ou feature phones aos smartphones) é atualmente uma peça essencial na nossa vida privada e profissional. Tornou-se difícil imaginar como poderíamos viver sem ele.

Estamos perante um instrumento que sustenta um processo revolucionário de comunicação sem limites e também de acesso imediato à informação e ao conhecimento. Para trabalhar neste planeta, tornou-se indispensável ter consigo um telemóvel permanentemente ligado. Além de imprescindível, o telemóvel é também um livro aberto que revela o nosso comportamento, valores, expectativas, desigualdades à escala global e o crescente risco de insustentabilidade do atual paradigma de desenvolvimento.

De acordo com a União Internacional das Telecomunicações, o número de contratos de telemóvel já ultrapassou a população global (cerca de 7200 milhões), embora nem todos tenhamos um telemóvel. O número de utentes que possuem mais de um aparelho não cessa de aumentar. Há já mais de 100 países onde o número de contratos de telemóvel excede a população. Nos EUA, o telemóvel é descartado em média um ano depois de adquirido. No Japão, essa longevidade sobe para 2 anos e 8 meses. À medida que consideramos países menos ricos, aquele número aumenta, até se tornar desconhecido nos mais pobres.

De acordo com a ABIresearch produziram-se cerca de 1200 milhões de telemóveis em 2007, dos quais 60% para substituir os descartados. A maior parte dos telemóveis é posta de parte por razões psicológicas e não por razões tecnológicas ou de obsolescência (embora esta esteja programada). O telemóvel é uma peça cada vez mais visível na nossa presença perante os outros. Ter um telemóvel antiquado não cria, em geral, uma boa imagem. Os operadores incentivam esta troca incessante porque contribui para lhes aumentar os lucros. Nos EUA, há atualmente mais de 500 modelos de telemóveis e todos os meses surgem mais de 20 modelos novos. Quem consegue resistir a um novo modelo se o preço for convidativo e se houver disponibilidade para o comprar?

Que sucede aos telemóveis descartados? Uma grande parte vai estagiar nas gavetas das nossas casas. Segundo estimativas do USA Geological Survey, havia em 2005 cerca de 500 milhões de telemóveis nas gavetas americanas. Hywel Jones, um investigador em ciência dos materiais, calcula que se compraram aproximadamente 1800 milhões de telemóveis em 2014, 44% dos quais irão hibernar em gavetas passados poucos anos, por vários motivos, principalmente por inércia, falta de tempo para pensar e agir ou ainda receio de recuperação dos dados pessoais contidos no aparelho. Uma percentagem também próxima de 44% irá ser revendida para reutilização.

Esta parcela dos telemóveis descartados vai originar um imenso mercado de telemóveis em segunda mão. Muitos têm de ser previamente recuperados e essa é a principal razão que encaminha centenas de milhões de telemóveis usados para os países não industrializados onde a mão-de-obra é mais barata. Grande parte da população desses países não tem possibilidade de comprar um aparelho novo, mas apenas os recuperados por vezes de forma tão precária que rapidamente deixam de funcionar. A exploração do natural e irreprimível desejo de possuir um telemóvel gera nos países mais pobres um comércio lucrativo e um terreno fértil para várias formas de corrupção. Há uma imensa cascata de fluxos de telemóveis desde os países mais ricos aos mais pobres na qual os aparelhos são sucessivamente arranjados até se tornarem irrecuperáveis. A partir daí, são descartados, vão para aterros ou são queimados porque os países mais pobres não têm condições para os reciclar.

Um telemóvel é rico em metais. Cada aparelho contém cerca de 40 elementos químicos, incluindo ferro, cobre, níquel, magnésio, estanho, zinco, tungsténio, lítio, cádmio, bário, cloro, manganês, titânio, prata, antimónio, berílio, cobalto, ouro, chumbo, tântalo, platina, vanádio, nióbio, arsénio e mercúrio. Estes elementos fazem parte dos materiais usados nos circuitos elétricos, no cristal líquido do visor, na bateria e no invólucro. Há naquele conjunto de elementos dois grupos que interessam particularmente: os metais nobres – ouro, prata e platina – e os especialmente tóxicos – chumbo, mercúrio, berílio, cádmio, arsénio, bromo e cloro.

Cada telemóvel contém em média 300mg de prata e 50mg de ouro. Por esta razão apenas, um telemóvel vale cerca de um euro. Poderá parecer pouco, mas os telemóveis são mais ricos em ouro do que o minério de ouro das minas de que dispomos atualmente. Um montão de telemóveis com uma tonelada contém cerca de 40 a 50 vezes mais ouro do que uma tonelada de minério extraída das minas de ouro presentemente em exploração. Há também muito ouro e prata nos iPads, nos tablets, notebooks e nos PC. Calcula-se que em cada ano os fabricantes destes aparelhos eletrónicos de elevado e crescente consumo utilizam na sua produção cerca de 320 toneladas de ouro e 7500 toneladas de prata. Depois são consumidos avidamente e eventualmente descartados passando a constituir o e-waste ou resíduo eletrónico. As estimativas atuais indicam que menos de 20% do resíduo eletrónico global é reciclado. No caso dos telemóveis, esta percentagem é muito menor, apenas cerca de 3%.

A reciclagem do e-waste gera aquilo que hoje se designa por mineração urbana (urban mining) ou mineração acima do solo (aboveground mining). Note-se, porém, que dos 40 elementos químicos presentes nos telemóveis apenas 17 se conseguem recuperar até valores da ordem de 95%, mesmo nas centrais de reciclagem de e-waste mais avançadas. Uma destas é a Umicore, situada na Bélgica, que recicla todo o tipo de e-waste e ainda outros resíduos metálicos num complexo com fundição e refinaria que custou cerca de 1900 milhões de euros. Os metais recuperados a alta temperatura, em particular o ouro e a prata, são vendidos em grande parte à indústria eletrónica para produzir novos telemóveis, tablets e PC. Fecha-se assim o círculo deste exemplo da chamada economia circular.

A Umicore tem grandes preocupações ambientais, dado que, como se viu, existem elementos altamente tóxicos no e-waste. Contudo, a reciclagem também se pratica de forma muito menos segura nos países menos industrializados, criando graves problemas para a saúde humana e para o ambiente. A recuperação do ouro e da prata faz-se simplesmente banhando os aparelhos em ácido nítrico e em ácido clorídrico, o que liberta elementos e compostos tóxicos para o ambiente, especialmente chumbo, berílio e cádmio. O principal destino do e-waste mundial é a China, que, de acordo com a Greenpeace, absorve aproximadamente 70% do total. A cidade de Guiyu, no Sudeste do país, vive sobretudo da reciclagem de e-waste, feita de forma bastante primitiva aproveitando a mão-de-obra barata. Há problemas graves de poluição do ar, da água e dos solos que afetam a saúde da população, a maioria migrantes de regiões mais pobres da China. Medições efetuadas em 2001 pela Basel Action Network num rio próximo de Guiyu deram quantidades de chumbo 2400 vezes mais elevadas do que o recomendado pela Organização Mundial de Saúde. O problema chamou a atenção do Governo chinês e também das Nações Unidas, tendo a situação melhorado nos últimos anos.

Há muita investigação que está a ser feita sobre como reciclar mais elementos químicos nos telemóveis, como substituir os elementos tóxicos, como aumentar a duração dos aparelhos, como incentivar a sua reciclagem e como diminuir a poluição provocada pelo e-waste. Mas um dos principais problemas encontra-se nas profundas distorções do ciclo de vida de um bem de consumo global provocadas pelas desigualdades entre países. Muitos dos telemóveis descartados nos países mais industrializados, em lugar de serem reciclados em fundições como a da Umicore, são vendidos a bom preço nos mercados paralelos para serem usados nos países mais pobres e eventualmente queimados ou lançados num aterro.  

A reciclagem do e-waste é apenas um exemplo eloquente do problema mais geral da gestão sustentável dos recursos naturais e da transferência da poluição dos países mais industrializados para os outros. Não é aconselhável que nos comportemos como se tais recursos fossem inesgotáveis e como se os problemas de poluição ambiental fossem apenas regionais ou locais. Esta advertência começa a fazer o seu caminho nos países mais industrializados e em especial na UE. A economia circular é uma tentativa de abordar esta problemática de forma estruturada. Porém, a esmagadora maioria da população do planeta tem problemáticas mais urgentes e graves.

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