Orçamento de carbono e mudança civilizacional

Estamos a viver uma situação de transição complexa à escala global no sector dos combustíveis fósseis e na sua relação com a mudança climática antropogénica. Alguns conceitos, factos e números ajudam a perceber o contexto.

Quando se utilizam combustíveis fósseis – carvão, petróleo e gás natural – lançam-se para a atmosfera grandes quantidades de dióxido de carbono, CO2, o principal gás com efeito de estufa proveniente de emissões antropogénicas. Cerca de metade deste CO2 permanece na atmosfera durante vários séculos. A intensificação do efeito de estufa na nossa atmosfera (causada pelo aumento da concentração de CO2 e de outros gases com efeito de estufa) provoca o aumento da temperatura média global da atmosfera e dos oceanos, o aumento da frequência e da intensidade de alguns fenómenos meteorológicos extremos e a subida do nível médio global do mar. Outra consequência é a fusão do gelo oceânico e de parte dos glaciares e campos de gelo polares em horizontes temporais mais ou menos dilatados.

Quanto CO2, ou melhor, quanto carbono sob a forma de CO2, podemos ainda emitir sem provocar alterações climáticas perigosas? Por outras palavras qual é o orçamento de carbono de segurança? Há dois tipos de incerteza na resposta a esta pergunta, científica e política. Política porque a União Europeia, as Nações Unidas e muitos outros organismos definiram 2ºC como o aumento da temperatura média global da atmosfera, desde a Revolução Industrial, para além do qual as alterações climáticas se consideram perigosas. Fixados os 2º C, dos quais já “gastámos” 0,85º C, qual é o orçamento de carbono disponível? Aqui a incerteza é apenas de natureza científica.

De acordo com o último relatório do Painel Intergovernametal para as Mudanças Climáticas (IPCC na sigla em inglês) a probabilidade de não ultrapassar 2º C será de 75% se não for emitido mais do que 1000 milhares de milhões (1012) de toneladas de carbono, sob a forma de CO2, desde 1860. Destas já foram emitidas cerca de 515 milhares de milhões até ao final do ano de 2011 pelo que temos um orçamento limite de aproximadamente 485 milhares de milhões. É uma grande quantidade de combustíveis fósseis que podemos consumir mas a voracidade energética da nossa civilização é insaciável. Note-se que as reservas mundiais estimadas de combustíveis fósseis (incluindo o petróleo e o gás de xisto) são muitíssimo superiores, por um factor da ordem de 100, à quantidade cuja combustão emitiria 485 milhares de milhões de toneladas de carbono. Isto significa algo muito importante: cumprir o orçamento de carbono não irá resultar da escassez de combustíveis fósseis mas de uma decisão livre que a humanidade irá ou não fazer.

A partir daqui a expressão do problema simplifica-se de forma dramática. Ou nos coibimos colectivamente de consumir combustíveis fósseis quando se esgotar o referido orçamento de carbono ou teremos alterações climáticas muito gravosas já para os nossos filhos, netos e seus descendentes. Há ainda a terceira via perigosa da geoengenharia mas é pouco provável que reúna o consenso global necessário para ser implementada.

Tudo isto é relativamente bem conhecido de todos os governos do mundo e de todas as grandes empresas de carvão, petróleo e gás natural. Antes de comentar a situação vale a pena continuar a apresentar números. Quanto tempo leva o mundo a esgotar o orçamento de carbono, mantendo o actual ritmo de consumo de combustíveis fósseis? Cerca de 30 anos ou menos. Por outras palavras, se mantivermos a produção e o consumo de carvão, petróleo e gás natural aos níveis actuais, antes de 2050, teríamos emitido mais 485 milhares de milhões de toneladas de carbono e, para não provocar alterações climáticas muito gravosas, teríamos de deixar de consumir combustíveis fósseis a partir dessa data! Alguém acredita? O que seria realista e compatível com o objectivo de evitar uma mudança climática perigosa seria diminuir progressivamente o consumo de combustíveis fósseis até esgotar o orçamento de carbono no fim do século. Por outras palavras tal significaria que não se utilizariam mais combustíveis fósseis a partir de 2100, excepto em actividades nos quais são insubstituíveis e que consomem quantidades relativamente pequenas! Quantos acreditam?   

Na realidade, de acordo com Justin Gillis do New York Times, as grandes companhias de carvão e petróleo já terão reservado jazigos cuja exploração integral é várias vezes superior ao orçamento de carbono e estão a gastar, em média, anualmente, cerca de 600 milhares de milhões de dólares para encontrar novos jazigos.    

Os governos também participam activamente nesta corrida cega. No seu conjunto, gastaram 500, 550 e 600 milhares de milhões de dólares em subsídios directos para incentivar o consumo de combustíveis fósseis, nos anos de 2012, 2013 e 2014. Na cimeira do G20 em Brisbane realizada a 15-16 de Novembro de 2014 discutiu-se um relatório onde se propõe a redução dos subsídios aos combustíveis fósseis mas que não foi aprovado pela Austrália, Canadá e Arábia Saudita. Quanto ao sector das energias renováveis o total mundial dos subsídios governamentais recebidos em 2014 foi cerca de 100 milhares de milhões de dólares. Por outro lado o total da despesa governamental mundial para reduzir as emissões de gases com efeito de estufa foi cerca de 400 milhares de milhões de dólares em 2014, valor muito inferior aos 1200 milhares de milhões gastos na exploração e nos subsídios aos combustíveis fósseis. Valor que é também inferior à receita da EXXON Mobil em 2013 que totalizou cerca de 496.000 milhões de dólares.

Apesar deste cenário os ventos de mudança estão também a atingir as grandes empresas de combustíveis fósseis. No dia 20 de Novembro, o Financial Times titulava surpreendentemente na primeira página que as grandes empresas de combustíveis fósseis estão confrontadas com uma “ameaça existencial” provocada pelas mudanças climáticas. O autor da afirmação, John Browne, ex-director-executivo da BP, alertou para a necessidade das grandes empresas de combustíveis fósseis reconhecerem os riscos da mudança climática e de se prepararem para “aproveitar as oportunidades de uma economia de baixo carbono”.

Curiosamente, uma semana depois em Viena, a OPEC decidiu não baixar a produção de petróleo o que acelerou a queda do preço do barril de petróleo, iniciada em Junho deste ano. Nos últimos seis meses, o preço do barril baixou 48% desde 115 dólares até cerca de 60 dólares. A razão desta queda, que irá beneficiar a recuperação económica de muitos países não produtores de petróleo, em particular Portugal, é complexa mas reveladora. Essencialmente a Arábia Saudita, que na realidade comanda a OPEC, não quer perder a quota de mercado, embora também pretenda que os preços do barril sejam altos. Se baixasse a produção, o preço provavelmente não subiria muito devido à competição do petróleo não convencional (areias betuminosas do Canadá e petróleo de xisto dos EUA). Por outro lado, quando o preço baixa, eventualmente, os produtores de petróleo não-convencional não vão aguentar a competição, baixam a produção, os preços aumentam e a Arábia Saudita mantém a sua quota de mercado. Baixar o preço do petróleo diminui também a competitividade das energias renováveis. É importante reconhecer que a gestão que a OPEC está a fazer da produção e do preço do petróleo é cada vez mais dominada por uma defesa acérrima contra a redução do consumo de petróleo por razões climáticas.

Por outras palavras, a OPEC e as grandes empresas de combustíveis fósseis farão tudo o que estiver ao seu alcance para evitar que se cumpra o “orçamento de carbono”. O seu objectivo comum é perpetuar indefinidamente a viciação mundial nos combustíveis fósseis. Presentemente, devido ao preço baixo do petróleo, as grandes companhias petrolíferas estão a passar por uma fase menos boa, mas acreditam que voltará a subir. Em pior situação estão os países produtores que não souberam diversificar a sua economia e que dependem quase exclusivamente da exportação de petróleo, tais como Angola, Rússia e Venezuela.

Mas há também um preço a pagar no futuro a médio (2050) e longo prazo (2100) porque em ambos os casos a civilização tal como a conhecemos hoje mudará. Se cumprirmos o orçamento de carbono assistiremos a uma revolução energética profunda que irá mudar os grandes centros de poder, a geoestratégia mundial e os estilos de vida, mas evitamos uma mudança climática devastadora da qualidade de vida de grande parte da humanidade e do ambiente. Se não cumprirmos o orçamento de carbono mantemos os actuais centros de poder e o paradigma energético intensivo que alimenta o consumismo, mas teremos um planeta com um clima muito mais violento e hostil ao qual será progressivamente mais difícil adaptarmo-nos.   

A última palavra neste confronto entre dois futuros possíveis, que se agudiza, cabe a todos e a cada um de nós. A opção de não cumprir o orçamento de carbono parece a mais provável porque perpetua o actual paradigma civilizacional globalizante baseado no crescimento ilimitado do consumo e das desigualdades. Mas há cada vez mais acções e exemplos de sentido contrário a surgir e a florescer, por todo o mundo. Há entre nós, e cada vez mais, heróis do futuro.

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