Obelisco fecal

Peço desculpas aos leitores mas vou conduzi-los ao pantanoso mundo da escatologia canina.

O animal devia ser grande, sem sombra de dúvida. Pois o testemunho que deixou sobre o passeio não é coisa que se encontre assim todos os dias. Dificilmente escapava à vista, não só pelo tamanho, como pela surpreendente configuração escultórica que inadvertidamente assumiu.

Peço desculpas aos leitores mas vou conduzi-los ao pantanoso mundo da escatologia canina. É uma viagem desagradável mas necessária para abrir as narinas aos donos das criaturas.

Eu descia a rua para uma caminhada junto ao mar, uma das poucas actividades não tributadas no país. O sol jogava às escondidas com as nuvens, numa batalha amigável que magnetizou o meu olhar durante alguns segundos e quase ia produzindo um desastre cá em baixo.

Foi por pouco. A perna esquerda já estava erguida à frente da direita, com o pé pronto a assentar no chão, quando o vi. Era enorme e erguia-se a prumo, completamente vertical, num equilíbrio físico improvável para a matéria aqui em causa. Conjugando fisiologia com arquitectura, o bicho produzira uma peça única no universo da canicultura: um obelisco fecal.

Tive de alçar ainda mais a perna e ampliar o passo para não destruir a obra de arte. A manobra impôs um esticão ao músculo adutor da coxa, que ameaçou cãibra. Desequilibrado e em risco de uma distensão, consegui in extremis evitar o obstáculo.

Outro não terá tido a mesma sorte, pois o totem entérico tinha a ponta superior partida, possivelmente devido a um chuto. Seccionado em duas partes, uma de pé e outra deitada, o conjunto lembrava um monumento arqueológico, mas desprotegido. Alguém ainda haveria de dar mais um pontapé naquilo.

Segui o meu rumo com o tema na cabeça. Por mais campanhas que se façam, ainda não se encontrou uma solução cabal para situações como aquela. Suspeito que ninguém tenha feito as contas ao peso real do problema em Portugal. Nos Estados Unidos fala-se em 1,6 milhões de toneladas de porcaria canina por ano, segundo estatísticas que não inspiram a menor confiança. Se forem reais, significam um terço de todo o lixo produzido em Portugal.

Na Nova Zelândia, um casal de investigadores foi mais longe e pôs-se a calcular, em termos mais amplos, o impacto ambiental do melhor amigo do homem. Aquilo que um cão médio come num ano, postulam Robert e Brenda Vale no livro Time to Eat the Dog: The Real Guide to Sustainable Living, equivale a 164 quilos de carne e 95 quilos de cereais. Dar conta deste apetite e das consequências intestinas ulteriores causa o dobro de prejuízos ao planeta do que um automóvel. É melhor ter em casa um periquito, que é pequenino e essencialmente vegetariano.

Mas o ser humano não é assim. E um cão é um cão, um companheiro admirável que está socialmente isento de culpa pelos delitos que, sem o saber, inflige à Terra. Há por aí inúmeras sugestões para reduzir o fardo ecológico de ter um quatro patas em casa. No capítulo dejectos, a alternativa mais correcta seria a compostagem doméstica, ou seja, transformá-los em fertilizante.

Onde estava, sobre o passeio, o obelisco fecal não iria com certeza fertilizar coisa nenhuma, a não ser uma ou outra sola de sapato. Quando voltava da caminhada, dei com ele ainda na sua excêntrica posição de sentido, um magnífico híbrido de digestão e desgin. Contornei-o desta vez em passo normal, fiz-lhe continência e deixei-o como estava, para admiração colectiva.

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