O que é preciso para salvar a paisagem da Peneda-Gerês? Pessoas

Nos últimos sete anos, as técnicas tradicionais das populações da área protegida foram recuperadas para preservar os urzais do planalto da Mourela. A iniciativa recebeu o mais importante prémio europeu de reabilitação.

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As técnicas tradicionais das populações da área protegida foram recuperadas para preservar os urzais do planalto da Mourela Adriano Miranda
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Escolha do projecto da Mourela para o prémio reflecte os bons resultados do processo utilizado e a sua continuidade Adriano Miranda
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Em Pitões das Júnias, o número de habitantes está em queda desde a década de 1950 Adriano Miranda
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Há muito tempo que os habitantes da zona do Planalto da Mourela se habituaram a serem cada vez menos e mais velhos Adriano Miranda
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Nesta Primavera tardia, é um verde-escuro que ocupa o horizonte, pontuado por algumas manchas brancas Adriano Miranda

Não fosse a Primavera preguiçosa e a vista seria diferente. Por esta altura do ano, o planalto da Mourela já devia estar a pintar-se de amarelo e lilás, as cores das giestas e das urzes a perder de vista que fazem destes matos um espaço particular no Parque-Nacional da Peneda-Gerês (PNPG). Só que, em vez dessas cores vivas, é um verde-escuro que ocupa o horizonte, pontuado por algumas manchas brancas. “Ainda há dias nevou”, conta Rita Ferreiro, directora de um projecto de desenvolvimento sustentável que, ao longo dos últimos sete anos, tem trabalhado para preservar esta paisagem. Para isso, recorreu-se a técnicas tradicionais que a população da zona há muito usava, mas que ameaçavam cair em desuso.

Este é o planalto da Mourela, no concelho de Montalegre, a zona mais oriental do parque nacional. Situado a mais de 1200 metros de altitude, é um espaço mais amigável para pessoas e animais do que as encostas íngremes das serras do Gerês ou da Peneda. A paisagem é diversa, com as zonas de cultivo ainda em utilização à volta das sete aldeias das redondezas, a contrastarem com as zonas encharcadas das turfeiras, onde vão florescer nos próximos meses as bolas-de-algodão, ou os matos das áreas mais planas, prestes a serem ocupados pelas cores das giestas e das urzes.

Estas espécies estão aqui desde sempre, mas foi a mão do homem que foi ajudando a que se preservassem. Sem essa intervenção, outras espécies podiam já ter ocupado o seu lugar. Porém, o planalto, que é habitado desde o neolítico, tem enfrentado uma acelerada perda de população nas últimas décadas, o que ameaça este equilíbrio. Foi com esta ideia em mente que a Associação de Desenvolvimento Regional da Peneda-Gerês (Adere) desenvolveu o projecto de preservação da paisagem cultural do plantal da Mourela, que está a ser implementado desde 2009.

“Nós não inventamos nada”, explica Rita Ferreiro, a sua coordenadora. As técnicas usadas desde então eram as mesmas que há muito eram transmitidas de geração em geração entre os habitantes das aldeias mais próximas. O trabalho feito pela Adere foi, por isso, no sentido de apresentar estas actividades de uma forma estruturada, tentando sensibilizar as populações para a melhor forma de as executar ou para a necessidade de recuperar outras soluções que estavam a cair em desuso.

Esta é uma zona onde vivem mais animais do que gente. Nos sete baldios do PNPG situados na zona da Mourela vivem 680 habitantes. Cabeças de gado são quase 2100, a maioria (1300) dos quais são bovinos. Por isso, o pastoreio é uma actividade a que aqui quase toda a gente se dedica. E a forma como é feito é um aspecto crucial para a manutenção da paisagem, uma vez que os animais vão comendo os matos, mantendo a sua dimensão controlada, e, no caminho, ajudam a fertilizar os terrenos com os seus excrementos. Assim, o que os técnicos do projecto do planalto da Mourela fizeram junto da população local foi indicar quais seriam os melhores locais para fazer passar os rebanhos de cabras. Ou seja, em vez de estarem a comer os matos numa área aleatória, estavam a fazê-lo em terrenos particularmente vulneráveis.

Técnicas em desuso

Há 48 anos, Lúcia Jorge nasceu em Pitões de Júnias, uma das povoações do planalto. Desde criança lembra-se de ver os pais, os tios, os vizinhos, a fazerem aquilo que agora foi seguido por este projecto de preservação. Nunca a ensinaram, porém, a fazê-lo. “Aprendi a ver”, conta, “porque era uma prática comum” na aldeia. Desse tempo, lembra-se das reticências dos habitantes mais antigos da povoação do concelho de Montalegre em relação à mais-valia que aqueles usos podiam significar. Diziam-lhe: “Isto é velho, somos nós que fazemos isto”. “Não percebiam bem a sua utilidade”, avalia.

Lúcia Jorge é de uma outra geração. Aprendeu a técnica, mas também o conhecimento científico por detrás de cada acção. Pertence à direcção do baldio de Pitões das Júnias e da associação de baldios do PNPG, que se tornou parceira do projecto do planalto da Mourela “de imediato” assim que os responsáveis da Adere apresentaram a ideia. “Percebemos que podíamos divulgar as nossas práticas e usos locais”, conta. E isso também foi uma forma de convencer os mais velhos, a quem foi dizendo que o que eles sempre tinham feito era, afinal, “um modelo a seguir”.

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Foi a forma de recuperar técnicas que ameaçavam perder-se no planalto da Mourela como a condução de giestal, uma forma de corte da giesta que serve para fazê-la crescer em altura. Essa técnica era usada para criar zonas de sombra, nas vastas áreas do planalto, que podiam ser usadas pela população para cultivo de batata. Com o recuo dessa cultura, hoje confinada às áreas mais próximas das povoações, a experiência foi-se perdendo, até ser recuperada por este projecto. Dessa forma, foi possível criar zona de protecção do calor para os animais quando estes andam nas zonas mais altas do planalto durante a época mais quente do ano.

Outra técnica para a qual foi necessária alguma pedagogia foram os fogos destinados a queimar matos e fertilizar os terrenos. Em vez das queimadas, que por vezes resultavam em fogos florestais, passou a ser feito um fogo controlado, através de uma pessoa certificada para o efeito e em momentos específicos do ano.

A conjugação destas técnicas para a preservação de uma paisagem única valeu ao projecto do planalto da Mourela ser um dos dois projectos nacionais distinguidos com o Prémio da União Europeia para o Património Cultural / Prémios Europa Nostra 2016, anunciados no início do mês – juntamente com a reabilitação da Catedral e Museu Diocesano de Santarém. O júri do galardão, que será entregue a 24 de Maio, em Madrid, destacou a “originalidade e criatividade” da iniciativa, considerando o projecto “fascinante” pela forma como sublinha a importância do “modo como as actividades humanas moldaram o ambiente natural”.

Enfrentar a desertificação

O projecto da Mourela foi premiado na categoria de Educação dos mais importantes prémios europeus de reabilitação. Esta escolha reflecte não só os bons resultados do processo – desde a sua implementação, em 2009, os incêndios florestais nesta área diminuíram 80% – como a sua continuidade. A iniciativa foi inicialmente apoiada com uma EEA Grant, financiada pela Noruega, a Islândia e o Liechtenstein no âmbito do Mecanismo Financeiro do Espaço Económico Europeu. A verba esgotou-se em 2011, mas, de então para cá, a iniciativa continua, mantida pelas associações de baldios do PNPG. 

Se a preservação desta paisagem depende da acção humana, o que lhe acontecerá se as pessoas desaparecerem definitivamente? A pergunta não é estranha para quem vive por aqui. Há muito que os habitantes da zona do Planalto da Mourela se habituaram a serem cada vez menos e mais velhos, face à saída sucessiva de pessoas. Em Pitões das Júnias, a maior das aldeias desta área do PNPG, o número de habitantes está em queda desde a década de 1950. Eram 500 pessoas, agora são pouco mais de 150. Só entre o Censos de 2001 e o de 2011, a quebra foi de 20%.

Pitões não é, sequer, o caso mais grave de desertificação, conta Lúcia Jorge. “Ainda temos alguma gente nova e que estará no activo nos próximos 15 anos. Nas outras aldeias do planalto, não vejo essa possibilidade”, desabafa a dirigente da associação de baldios do PNPG. O futuro daquela zona da área protegida é por isso foco de preocupação. “Se os jovens que estão fora não voltarem à terra, vejo que essas áreas de mato vão acabar por tornar-se área de carvalhal.” Seria o fim do Planalto da Mourela tal como o conhecemos.

“É realmente um risco que nós corremos”, admite Rita Ferreiro. A preocupação com a fixação da população esteve presente desde o início no projecto da Adere para o planalto da Mourela. A forma de fixar população nesta região é melhorar as condições económicas em que vivem, criando novas oportunidades de trabalho. Sem perder as actividades agrícola e pecuária, a Adere entende que o turismo pode ser o complemento ideal para os rendimentos destas pessoas.

Daí que, além da vertente ambiental, o projecto implementado pela Adere tenha tido também um lado turístico. Nesse sentido, foi criado um centro de acolhimento para visitantes, numa antiga casa florestal, às portas de Pitões das Júnias. Dali parte um conjunto de cinco trilhos para caminhada, pensados para diferentes públicos, que vão desde um percurso de acesso universal, que pode inclusivamente ser percorrido por pessoas com mobilidade reduzida, até à Grande rota da Mourela, um percurso de 62 quilómetros pela extensa área do planalto, para serem percorridos em dois a três dias. Todos eles passam por áreas dos baldios que participaram no projecto, permitindo o contacto com a paisagem amarela e lilás das giestas e urzes, que marca esta zona do PNPG, mas também com campos agrícolas, áreas de pastoreio e alguns dos terrenos onde foram desenvolvidas as técnicas usadas no projecto, para que os visitantes possam ver a forma como estas funcionam na prática.

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