Ministério do Ambiente quer criar certificados de despoluição para a venda de terrenos

Projecto legislativo obriga milhares de entidades a analisarem os solos, mas descontaminação só será exigida três a cinco anos depois.

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Leis anunciadas para 2013 ainda não existem e muitas empresas fazem elas a avaliação dos terrenos Enric Vives-Rubio

Um projecto legislativo governamental poderá obrigar os vendedores de terrenos antes ocupados por determinadas actividades, como indústrias ou postos de abastecimento, a demonstrarem se os solos estão ou não contaminados. Milhares de entidades, de empresas a autarquias, serão chamadas a fazer uma avaliação do estado dos solos. Mas a legislação, se o projecto for adiante, só resultará em acções efectivas de despoluição três a cinco anos depois de aprovada.

Um decreto-lei e uma portaria, ainda numa fase inicial de discussão, pretendem pôr um ponto final em quase duas décadas de promessas de que Portugal teria uma lei para os solos contaminados. Ambos foram colocados em consulta pública no princípio do mês, num processo lançado pela Agência Portuguesa do Ambiente e que se estende até 14 de Outubro. O passo seguinte só será tomado pelo próximo Governo.

Segundo o projecto, uma série de sectores industriais será chamada a cumprir um longo percurso de avaliações, com várias fases, destinadas a identificar e remediar áreas contaminadas. O mesmo vale para os postos de abastecimento, para os municípios com antigas lixeiras encerradas, para empresas do sector dos resíduos e para instituições militares. Serão milhares de operadores ou entidades. Só os postos de abastecimento são cerca de 2800, segundo dados da Associação Portuguesa de Empresas Petrolíferas.

Cada operador terá um ano para fazer uma avaliação preliminar do risco de contaminação do solo representado pela sua actividade. Se o risco for considerado médio ou elevado, terão de ser feitas análises detalhadas para saber se os terrenos onde se centra a actividade estão ou não poluídos. Se estiverem, o operador será obrigado a limpar tudo, com base num projecto de remediação, às suas custas.

Os prazos máximos previstos entre cada uma das fases deste processo implicam que da aprovação dos diplomas até à remediação dos locais contaminados podem passar de três anos e dois meses a cinco anos e três meses. O tempo poderá ser maior, se os prazos forem prorrogados, como prevê o diploma.

“Uma das coisas que mais preocupam são os tempos de aplicação da lei”, comenta Rui Berckmeier, da associação ambientalista Quercus.

Mostrar provas de terrenos limpos
O projecto legislativo contempla algo que vem sendo sugerido há muito por profissionais e associações da área ambiental: a apresentação, para efeitos de registo predial, de uma “declaração de risco de contaminação do solo” ou de um “certificado da qualidade do solo”. Será obrigatória também a prova de que o terreno está limpo sempre que se queira urbanizar ou dar uso agrícola a zonas com uso industrial.

O objectivo é evitar os riscos para a saúde provocados pela exposição a poluentes no solo, algo que nunca foi alvo de uma política nacional efectiva em Portugal.

O tema assumiu particular protagonismo durante a construção do Parque das Nações, na década de 1990, numa zona de Lisboa com forte contaminação industrial. Sem legislação na altura, adoptaram-se normas canadianas de contaminação dos solos, que até hoje são utilizadas como referência.

Outros países europeus adoptaram legislação própria, mas Portugal, apesar das promessas de sucessivos governos, ainda não o fez. “No mínimo, estamos atrasados dez anos”, afirma Carlos Costa, da empresa Egiamb, especializada em projectos de descontaminação.

Carlos Costa diz que o projecto legislativo seguiu praticamente à risca as mesmas normas canadianas e que isto pode resultar em problemas. Em Portugal, explica o especialista e ex-professor da Universidade Nova de Lisboa, os níveis naturais de arsénio no solo, por exemplo, são maiores do que no Canadá. Por isso, algumas zonas podem parecer poluídas à luz dos valores da legislação, sem que esta contaminação tenha a ver com uma actividade industrial.

Costa diz ainda que o rol de sectores abrangidos pelo projecto legislativo não é suficientemente abrangente. “Conheço muitas empresas que têm problemas e que não estão nesta lista”, afirma. “Mas sou a favor de que a legislação saia. É melhor uma com problemas do que nenhuma”, completa.

Custos elevados da descontaminação
Quem também anseia pela aprovação rápida de uma lei nesta área são os dois centros integrados de recuperação, valorização e eliminação de resíduos perigosos inaugurados em 2008 na Chamusca – os CIRVER. Os dois consórcios privados que os construíram seguiram um caderno de encargos do Governo que exigia, entre outras valências, uma unidade de descontaminação de solos a cada um.

“A nossa unidade está praticamente parada”, afirma Manuel Simões, director-geral da Ecodeal, um dos CIRVER. Menos de 10% da capacidade está a ser utilizada. “Somos os principais interessados em que a legislação vá para a frente”, diz Manuel Simões.

Apesar de não haver lei ainda, muitas empresas fazem, por sua conta, a avaliação dos seus terrenos. “Não há semana que eu não receba uma empresa a pedir uma consulta”, refere Carlos Costa.

Para uma indústria de dimensão média, uma avaliação dos solos pode custar 20 mil euros. A factura da descontaminação é muito mais elevada, variando conforme a situação. Limpar a zona da antiga fábrica de gás da Matinha, para onde está prevista uma urbanização da Espírito Santo Property, empresa ligada à falida Rio Forte, custará algo em torno de 3,5 milhões de euros.

Valores elevados podem vir a recair também sobre as câmaras municipais, caso antigas lixeiras já encerradas tenham causado algum tipo de contaminação. A Associação Nacional de Municípios Portugueses, segundo a sua assessoria de imprensa, ainda não foi oficialmente ouvida sobre o projecto de legislação e não tem, por ora, opinião sobre o assunto.

Com certamente milhares de processos para serem avaliados, o projecto de legislação vai implicar uma carga adicional sobre a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e as comissões de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR). “Com os recursos de que dispõem hoje, de certeza que não vão conseguir dar resposta”, avalia Rui Berckmeier, da Quercus.

O Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia não respondeu a um conjunto de perguntas do PÚBLICO sobre os documentos em discussão – descritos como “projecto legislativo” na consulta pública. Uma nota escrita do gabinete do Secretário de Estado do Ambiente diz apenas que não se trata de “uma proposta legislativa do Governo, mas apenas um documento de trabalho de carácter técnico, preparado pela APA, para efeitos de auscultação e de obtenção de contributos pelos vários sectores”.

O actual Governo chegou a anunciar para 2013 a conclusão da lei dos solos contaminados. “Não foi possível concluir este processo na presente legislatura”, refere a nota da Secretaria de Estado do Ambiente.
 

   

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