Castanhas à Isabel Jonet

Tal como para quem tem uma perspectiva ambiental do quotidiano, há coisas muito pouco relativas em matéria de alimentação: comer bifes todos os dias é um disparate nutricional e uma tragédia ambiental.

Este foi um bom ano de castanhas, nozes e bolotas. Sobraram umas castanhas assadas, e tinha mais para assar nos dias seguintes, numa corrida contra a voracidade das lagartas.

Um fundo de azeite – escasso a pensar na gordura dos enchidos – posto ao lume para estalar três dentes de alho. Tirei-os, castanhos, e juntei uma meia morcela inteiriça e três quartos de um chouriço às rodelas, deixei fritar ligeiramente, reduzi o lume e tapei o tacho.

Quando o cozinhado ameaçava queimar, juntei-lhe meio copo de vinho branco, deixei evaporar um bocadinho e juntei as tais sobras de castanhas.

Ripei e aferventei uma couve portuguesa numa água a ferver em cachão, guardando-a.

Tinha aproveitado o tempo para separar os caules intermédios, pouco fibrosos, cortando-os numa espécie de juliana relativamente fina, e juntei-os à mesma água onde tinha cozido a couve. Escorri-os e juntei às castanhas.

Aproveitei para refrescar o cozinhado com um bocadinho da água de cozedura das couves.

Aos talos grossos da couve, tirei-lhes a parte externa mais fibrosa e cortei as partes interiores dos talos em troços muito pequenos, que foram parar à água que já tinha cozido as folhas.

Escorri-os e juntei às castanhas e enchidos.

Fui deixando apurar e fui deitando um pouco da água de cozer as couves.

Quando achei que se aproximava a hora, juntei-lhe as folhas da couve, dei uma volta a tudo, pondo uma farinheira a descansar em cima de tudo.

Deu para mais de dez pessoas.

Num certo nível, a privação é uma ideia relativa: conheci uns miúdos que participaram num projecto de voluntariado na Ilha de Moçambique – tirando pessoas da miséria através de microcrédito – e, ao fim de alguns meses, suspiravam por um hambúrguer porque estavam fartos de lagosta.

Mas, abaixo de um certo nível, a privação é bem concreta.

Tal como para quem tem uma perspectiva ambiental do quotidiano, há coisas muito pouco relativas em matéria de alimentação: comer bifes todos os dias é um disparate nutricional e uma tragédia ambiental.

Quando lemos a história do menino que sofre com a impossibilidade de a mãe comprar as bolachas que leva para a escola, convém distinguir duas coisas: 1) a impossibilidade da escolha por razões económicas, que nos deve preocupar por poder conduzir à privação; 2) o disparate de mandar bolachas para o lanche escolar do menino, do ponto de vista nutricional ou ambiental.

Esta segunda questão é tão verdade para o filho da senhora que não tem dinheiro, como para o neto de Alexandre Soares Santos.

É que há diferença entre privação e frugalidade.

Para os estetas a quem feriu a falta de sofisticação de Isabel Jonet na defesa da frugalidade, talvez o problema se resolva com a mesma defesa feita com a maestria de quem cultivava o ofício das palavras com desvelo: “Todo o luxo é uma forma de degradação” (Eugénio de Andrade).

P.S. – O que sobrou da água de cozer as couves e os talos foi servir de base à sopa de grão do dia seguinte, melhorando o sabor, aproveitando valor nutricional e evitando o desperdício.

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