Xeque à Banca

O sistema financeiro é um assunto demasiado sério para ser deixado apenas a banqueiros, economistas, políticos ou jornalistas. Pelo que questionar hoje a banca e o seu funcionamento é um imperativo de cidadadania e a única garantia de estabilidade do sistema democrático.

Devemos falar de cheque para a Banca ou de xeque à Banca? No xadrez, o termo xeque, indica uma ameaça imediata e quando não há espaço para escapar podemos estar perante um xeque-mate.

A Banca não pode ser colocada em xeque-mate, pois é necessária à economia. Mas, deve ser colocada em xeque, pois não merecíamos nem os bancos nem alguns dos banqueiros (e podemos juntar políticos e reguladores com responsabilidades sobre o sector) que tivemos nos últimos anos.

Embora tenhamos assistido à ideia de que com o fim da presença da troika e o aproximar das legislativas de 2015 tudo estaria a regressar à normalidade em Portugal, eis que de repente somos transportados para um quase 2011 pelo caso do BES.

Nos últimos dias tem-nos sido explicado quase tudo o que quisermos saber sobre o BES, o GES, os seus protagonistas, as lutas de gestão, os limites do crédito, os limites da segurança, a relação entre banca e políticos, quem paga, quem deve, há com que pagar, etc. No entanto, a pergunta óbvia é saber se há algo que devamos ainda perguntar e analisar, para além dos cenários de bonança ou catástrofe?

A resposta é sim. A questão fundamental é hoje saber se a gestão do sistema financeiro português e europeu é um assunto puramente económico ou é totalmente político?

A minha resposta é que é absolutamente político. Pois, como sugere o sociólogo John Thompson, as nossas sociedades funcionam assentes num pacto faustiano entre Estado e banca. E nós, ou melhor os nossos salários e depósitos, são a “alma” que é a moeda de troca nessa relação.

Por isso, somos convocados (e devemos aceitar essa convocação) para colocar tudo em causa no que respeita à Banca, questionar o que está mal e porque podemos estar a chegar de novo à casa de partida pré-troika.

Embora não indo tão longe no número de perguntas propostas por Anat Admati (Stanford Graduate School of Business) e Martin Hellwig (Max Planck Institute) no seu artigo de 6 de Julho, intitulado “The Parade of the Bankers’ New Clothes Continues: 28 Flawed Claims Debunked“, creio haver cinco perguntas fundamentais para as quais necessitamos procurar respostas e discutir.

A primeira pergunta versa sobre se é possível afirmar que os contribuintes desta vez, e ao contrário de 2011, não serão chamados a pagar pelos erros do BES/GES? Na realidade os contribuintes (nós) já estão desde há vários anos a pagar pelos juros dos 6.4 mil milhões de empréstimo da troika destinados à Banca portuguesa e que não haviam sido até agora usados e que, muito provavelmente, acabarão no BES.

A segunda pergunta implica uma comparação para que possamos ter a noção da dimensão do que se está a passar com o BES/GES? Foi ontem anunciado que os fundos estruturais europeus para Portugal, para o período 2014-2020, atingirão um valor de 21 mil milhões de euros.

Se quiséssemos por um momento comparar o incomparável, fundos estruturais e fundos para a Banca, que percentagem dos fundos estruturais representaria a utilização dos 6.4 milhões de ajuda da troika à banca, ainda não utilizados, e que poderão vir a ser utilizados no BES? Cerca de 30% do valor que teremos de fundos estruturais em seis anos.

É esta a ordem de grandeza de que nos precisamos de lembrar para conferir a importância necessária a um assunto que por falar de “milhares de milhões”, e extravasar o dinheiro que ganharemos ao longo da vida, assume por vezes foros de irreal e distante, mas que precisa de ser reconduzido à discussão do dia-a-dia. 

A terceira pergunta questiona qual a razão para a chanceler Merkel ter referido que “o exemplo de um banco português mostrou-nos nos últimos dias como os mercados se agitam, como a incerteza volta rapidamente e como ainda é frágil a construção do euro”?

Para podermos responder temos de colocar outra pergunta: Que bancos estavam em 2013 menos bem capitalizados? espanhóis ou alemães. A resposta correcta, embora o possa surpreender, é "alemães”.

Como refere Jakob Vestergaard no seu estudo “Behind smoke and mirrors on the alledged recapitalization of Europe’s banks” os sectores bancários italiano e espanhol tinham, em 2013, uma relação entre capital (medido como o dinheiro do próprio banco) face ao total de activos desses bancos que era quase o dobro da presente nos bancos alemães e franceses.

O que a análise de Vestergaard demonstra é que efectivamente o problema está nos detalhes, pois a Autoridade Bancária Europeia ao escolher utilizar rácios baseados numa definição de capital mais ampla, do que o dinheiro do próprio banco e, por sua vez, ao compará-lo com activos “temperados” em função do risco que lhes é atribuído (em vez de comparar com o total de activos), obscureceu em vez de iluminar a capitalização dos bancos europeus.

Daí, que não se estranhe que algo que está óptimo num teste de stress venha, depois, a cair na rua da amargura passados alguns meses – pois nada mudou realmente entretanto, apenas o material do qual os rácios são feitos.

A quarta questão relembra o que Lance Bennett concluiu sobre o jornalismo norte-americano quando os relatos de tortura no Iraque não surgiam nas páginas dos jornais. A pergunta é por que razão apenas alguns e não todos, jornais, rádios e televisões, insistiram nas notícias sobre os problemas do GES e do BES nos últimos três anos?

Será porque, como sugeria Lance Bennet, não existiam no campo executivo, parlamentar e judicial campeões dessa temática? Ou seja, quem perante a opinião pública quisesse fazer ouvir a sua posição? Mas quando não há campeões não deve o jornalista substituir-se a eles? Isto não poderá querer dizer que uma parte do jornalismo português estará comprometido e que necessita de ser salvo desse comprometimento involuntário? Esta é uma pergunta ainda sem resposta mas que importa fazer.

A última pergunta tem a ver com o universo técnico da prática financeira e da regulação da mesma. Será que o que se diz que se vai fazer entre Basileia III e a futura União Bancária chega? Está bem feito? Finalmente impedirá os mesmos problemas?

Anat Admati refere que se o património do banco (o seu próprio dinheiro) for só 5% dos seus activos, mesmo uma pequena perda de 2% poderia desencadear uma corrida aos depósitos e os credores podem recusar renovar os empréstimos, obrigando o banco a deixar de emprestar ou a vender os seus activos à pressa e, se muitos bancos forem atingidos ao mesmo tempo, temos aí a tal crise sistémica.

Admati argumenta que se os bancos pudessem absorver maiores perdas, os reguladores teriam menos de se preocupar com medições de risco, porque os bancos teriam maiores incentivos para gerir melhor os seus riscos e tomar decisões de investimento mais acertadas. Daí, a sugestão da necessidade de aumentar os mínimos de dinheiro próprio dos bancos e não o fazer depender tanto de activos cujo valor varia em função de riscos percebidos.

Cada vez que algo de problemático surge em torno da Banca, quem está na banca e no poder político assume a necessidade de tranquilizar para não criar pânico (evitar os bank runs ou corridas aos depósitos) e, assim, não aumentar exponencialmente o problema vivido. Esse é o habitual mantra comunicativo da gestão de crises financeiras – e, como se costuma dizer, vem nos livros.

No entanto, não criar pânico não deve, não pode, ser justificativo para não questionar o que de errado se passa na Banca e o que precisa ser mudado.

Na realidade, há um paradoxo na gestão política e regulatória do sistema bancário. Quando não há pressão pública os governantes e os reguladores não conseguem intervir como deviam para garantir o interesse dos cidadãos, pois estão diminuídos na sua força face à Banca.

Por sua vez, quando há pressão pública os governantes e reguladores vêem-se impelidos para não fazer alarido, tentar acalmar a pressão e, por sua vez, afastar-se do problema para não serem também por ele engolidos.

Uma vez que os problemas no sistema financeiro sejam identificados muito pode ser feito para os resolver. E isso só se faz com leis e regulação a par da sua efectiva implementação.

O problema é que a reforma do sistema financeiro pós 2007-2009 (e pós 2011 em Portugal) foi cada vez mais relativizada à medida que as taxas de juro desceram e os ratings subiram. E a razão dessa relativização foi política.

Como referem Admati e Helvig, os políticos preferiram negligenciar ou esquecer os riscos que o sistema financeiro impõe ao público. Podem ter acreditado, falsamente, que esses riscos nunca podem ser evitados. Ou ter deixado outras considerações interferir na sua vontade efectiva de reformar o sistema.

E a regulação bancária? Tem funcionado bem em Portugal? Depende. O regulador bancário português tem insistido, e bem, na dimensão micro, aumentando a informação sobre os depositantes, promovendo a pedagogia sobre o risco dos produtos financeiros, aumentando a capacidade de identificação dos problemas de risco de crédito dos clientes, mas aparentemente descurou a dimensão macro para os mesmos problemas.

Os bancos e os banqueiros sofrem exactamente dos mesmos problemas com que a regulação se preocupa face aos depositantes (idoneidade, portefólios equilibrados; risco de crédito) mas as consequências, quando a regulação não actua, são bem mais graves quando se trata da gestão de instituições do que quando ocorrem com os depositantes. Há, portanto, um desequilíbrio entre o alvo micro e macro da regulação em Portugal e precisa de ser corrigido já.

A conclusão é simples, ou todos nós nos começamos a interessar e agir obrigando a que a regulação e as políticas mudem, pressionando os actores do sistema financeiro e político ou então políticos, banqueiros e reguladores não o saberão mudar e estaremos condenados, qual Sísifo, a eternamente reviver este pesadelo.

Precisamos rapidamente de um xeque à Banca (e à política de gestão financeira) para não termos de continuar a passar cheques à Banca.

O autor é docente do ISCTE-IUL em Lisboa e investigador do Centre d'Analyse et Intervention Sociologiques (CADIS) em Paris.

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