Veículo criado pela CP em paraíso fiscal serviu para pagar dívida à Refer em 2003

Autorização para a empresa obter financiamento junto da sociedade em Jersey foi dada por Ferreira Leite e Carmona Rodrigues.

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A CP usou financiamento de 400 milhões para pagar portagem ferroviária Bruno Lisita

A sociedade criada pela CP no paraíso fiscal de Jersey, cuja existência o Ministério das Finanças confirmou nesta sexta-feira, foi criada em 2003 e serviu para a transportadora ferroviária obter um empréstimo obrigacionista de 400 milhões de euros que lhe permitiu saldar uma dívida antiga à Refer, relativa à taxa de utilização da infra-estrutura ferroviária.

A CP liquidou a dívida no Verão de 2003, pondo fim a um litígio que durava há vários anos, embora a factura a pagar à Refer pela chamada portagem ferroviária tenha continuado a ser um problema ao longo do tempo e até anos mais recentes, com milhões de dívidas acumuladas. Naquele ano, a CP cria a Polo III - CP Finance Limited, com sede em Jersey (Ilhas do Canal da Mancha), e o então Governo de Durão Barroso dá luz verde à operação de financiamento da transportadora ferroviária junto desta sociedade.

O despacho consultado pelo PÚBLICO mostra que a autorização é dada pela ministra das Finanças da altura, por decisão conjunta do então secretário de Estado do Tesouro e Finanças, Francisco Esteves de Carvalho, em representação de Manuela Ferreira Leite, e ainda pelo ministro das Obras Públicas, Transportes e Habitação, António Carmona Rodrigues. O PÚBLICO tentou, sem sucesso, contactar Ferreira Leite. Já Carmona Rodrigues respondeu apenas: “Não tenho nenhuma ideia do assunto”.

Para emprestar dinheiro à CP, a Polo III - CP Finance Limited realiza uma emissão de dívida conseguindo no mercado 400 milhões de euros, emitidos em duas tranches (uma de 100 milhões com reembolso previsto para 2013 e os restantes 300 milhões a amortizar em 2015). Deste montante global, a transportadora ferroviária liquidou a dívida de 170 milhões de euros à Refer. As notícias publicadas na altura davam conta de que a CP fez um roadshow, que envolveu bancos nacionais e internacionais, para emitir o empréstimo obrigacionista.

O PÚBLICO também contactou Ernesto Brito, que era presidente da transportadora em 2003 e que referiu: “Não tenho memória [sobre o caso]. Não consigo reconstituir em detalhe o processo para dar esclarecimentos adicionais”. Já a CP, que também contratou swaps para cobrir o risco do financiamento obtido em 2003, não respondeu às questões enviadas pelo PÚBLICO.

IGCP fez investimento

A Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP) também surge associada a aplicações offshore porque foi à emissão de dívida da CP, investindo 133 milhões de euros. A linha de obrigações em que a agência investiu venceu em Julho de 2015. O pagamento já foi concretizado pela transportadora ferroviária.

O investimento do IGCP em dívida emitida pela Polo III foi ontem confirmado pelo Ministério das Finanças, em reacção a uma notícia da TSF, dando conta das diligências feitas para identificar as entidades públicas que a 30 de Junho de 2015 tinham em carteira aplicações em paraísos fiscais.

“A posição detida pelo IGCP resultou de uma operação no âmbito da utilização de disponibilidades da tesouraria para compra de títulos de dívida da República Portuguesa ou de empresas públicas reclassificadas, como é o caso da CP”, refere em comunicado o ministério liderado por Mário Centeno. O PÚBLICO questionou a agência liderada por Cristina Casalinho sobre este tema, mas não obteve resposta.

Além do IGCP, as Finanças confirmaram o caso da Segurança Social, cujo fundo de estabilização financeira aplicou 171 mil euros numa farmacêutica com sede na Jordânia, a Hikma Pharmaceuticals. O investimento, que foi alienado já este ano, diz respeito a uma compra de acções, “emitidas e reguladas pela London Stock Exchange”. Reagindo às notícias, o ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, José Viera da Silva, veio sublinhar que a Segurança Social não investiu em “qualquer espécie de offshore”. Tratou-se de uma “participação num fundo britânico que conjuga as acções de um conjunto variado de empresas”, afirmou, citado pela Lusa.

A questão da aplicação de verbas de organismos públicos em offshores não é nova, mas voltou à ribalta após o caso dos Panama Papers, levando o Bloco de Esquerda a questionar o executivo sobre os investimentos feitos neste tipo de territórios.

Agora, o ministério diz que “está a estudar os mecanismos necessários para assegurar que não existam entidades públicas com aplicações em territórios qualificados como ‘paraísos fiscais’ sem o prévio conhecimento e autorização do membro do Governo responsável pela área das finanças”, que neste caso é o secretário de Estado das Finanças e do Tesouro Ricardo Mourinho Félix.

O ministério garante que será também “analisada a pertinência de operações de financiamento” através de offshores, como aconteceu no caso da CP, “tendo que ser a sua realização sujeita a autorização desse mesmo representante”.

Jersey, uma das Ilhas do Canal (Mancha) é um dos territórios que faz parte da lista de paraísos fiscais elaborada pelo Ministério das Finanças.

Ao longo de cinco anos, de 2010 a 2014, foi o 12.º destino das transferências realizadas de Portugal para contas em paraísos fiscais, num total de 119 milhões de euros. com Luís Villalobos

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