Uma história transatlântica mal contada

A Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, conhecida como TTIP, é um dos próximos passos fundamentais na estratégia de subsidiarização da capacidade decisória dos Estados-membros a respeito da direcção das relações comerciais europeias. De facto, o TTIP é um acordo de comércio livre que, à imagem de outros, como o CETA (Acordo UE-Canadá), ou os acordos bilaterais com o Japão e Singapura, procura dar corpo a uma vocação cada vez mais pronunciada da Comissão Europeia: reconfigurar os quadros regulatórios nacionais a partir de instâncias exteriores.

De acordo com a Comissão, a Direcção-Geral Comércio e o Comissário Karel de Gucht, o TTIP trará benefícios tangíveis às economias europeias. Embora a tangibilidade desses benefícios seja dúbia e a sua quantificação pareça ter pouca solidez, a Comissão apressou-se a requerer ao CEPR (um think-tank largamente alinhado com a ideologia implícita do TTIP) um estudo de quantificação dos benefícios tarifários e não-tarifários para a economia europeia, como um todo, e para cada economia nacional, em particular, no caso de uma condução bem-sucedida das negociações por parte dos mandatários europeus e americanos. No passado dia 31 de Julho, o estudo de impacto económico sobre Portugal foi apresentado, na Câmara do Comércio e Indústria Portuguesa, com a presença do coordenador do estudo, Joseph François, e do Secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Bruno Maçães.

De acordo com o estudo, podemos tirar duas conclusões fundamentais: o benefício macroeconómico, para Portugal, cifrar-se-á em 0,66% do PIB até 2030 (a estimativa mais optimista); e, dado o padrão de especialização da economia portuguesa, o levantamento das barreiras tarifárias é mais importante para Portugal do que o levantamento das barreiras não-tarifárias. Isto é, a cooperação e harmonização regulatórias, uma das componentes mais polémicas do TTIP, a par do chamado ISDS (Mecanismo de Resolução de Conflitos Investidor-Estado), não parece ser tão importante para a economia portuguesa como a remoção de tarifas que já são muito baixas.

Esta é a versão dominante da história. A versão real é outra e pertence ao mundo da política comunitária. Nesse mundo, o TTIP inaugura uma fase preocupante da União Europeia. Há três razões fundamentais para questionar o TTIP e contestar a sua implementação.

Em primeiro lugar, e ao contrário do que tem sido argumentado pelo Comissário Karel de Gucht, agora com o apoio do CEPR, os benefícios económicos do TTIP são dúbios. Pelo menos três estudos (um da Fundação Austríaca para a Investigação em Desenvolvimento, um da Câmara Federal Austríaca do Trabalho e um do Departamento de Gestão, Inovação e Competências da London School of Economics), com pressupostos diferentes daqueles em que a Comissão Europeia se baseia, mostram que o TTIP pode causar um aumento do desemprego, em especial nos casos semelhantes ao português, que o mecanismo ISDS não trará benefícios tangíveis e que o estudo CEPR tem falhas metodológicas graves. Os defensores portugueses do TTIP não referem estes problemas, preferindo chamar, à Assembleia da República, associações de sectores industriais com uma leitura problemática e errónea do Acordo.

Além de tudo isto, a Comissão ainda não se referiu ao impacto social e ambiental do TTIP, previsivelmente gravoso para as sociedades europeias. Sabemos que os acordos de comércio livre tendem a funcionar em detrimento da protecção de direitos fundamentais ou do ambiente. A contestação à NAFTA, ao AMI e à OMC, entre outras invenções do comércio livre global, mostra que o consenso a respeito destas políticas públicas só existe nas palavras do lobbying em Washington e Bruxelas.

Em segundo lugar, o TTIP tem sido um dos processos menos transparentes dos últimos anos, mesmo para a prática corrente da União Europeia. Os casos de atropelo ao direito à informação, de omissão de informação e desrespeito pelas normas protectoras das funções do Parlamento Europeu e do Tribunal Europeu de Justiça multiplicam-se. Esta não é uma história que o Governo português goste de focar, mas o problema da transparência, à medida que as rondas de negociação do TTIP se sucedem, aumenta. Ainda não conhecemos o teor do texto que estabelece a posição dos negociadores europeus. E a única forma de ler os textos consolidados, acordados em cada ronda, é deslocarmo-nos a Bruxelas ou Estrasburgo, deixar todos os dispositivos electrónicos à porta e entrar numa sala de leitura altamente vigiada. Os deputados ao Parlamento Europeu estão na mesma situação. Trata-se de uma situação tão caricata que a Provedora Europeia, Emily O’Reilly, já expressou a sua discordância a seu respeito. Uma deputada europeia dos Verdes, Heidi Hautala, já referiu que a falta de transparência e a renitência da Comissão violam o artigo 218.º do Tratado de Lisboa, que define as condições mediante as quais o Parlamento Europeu escrutina o trabalho da Comissão Europeia.

Em terceiro lugar, o TTIP implicará o estabelecimento de um conjunto de instituições e procedimento inteiramente escudadas do escrutínio cidadão e parlamentar. A cooperação regulatória implicará, por exemplo, a criação de um conselho, cujos membros não serão eleitos, e prováveis sanções, cuja gravidade deverá atingir aquelas já previstas no Pacto de Estabilidade e Crescimento, contra os Estados que não aceitem modificar os seus quadros regulatórios no sentido da harmonização com os Estados Unidos da América.

Por isso, o TTIP não trará benefícios. É um processo crivado de problemas, falhas e contradições. Urge contestá-lo e aos seus proponentes. Investigador em Sociologia

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