Um Conto de Natal Europeu

Esta história é uma obra de ficção, qualquer semelhança entre personagens políticos ou acontecimentos europeus reais é deixada à sua imaginação.

O dia havia começado, tal como tantos outros, na normalidade possível de uma capital não periférica da União Europeia.
Para começar digamos que o "Homem" tinha morrido. Neste particular não pode haver absolutamente a menor dúvida; a notícia do seu falecimento havia sido dada em simultâneo pelo Euronews, BBC e France24, através da leitura de um comunicado oficial do “seu” Governo.

A própria "Chefe" o havia confirmado. Ora, a "Chefe" era alguém bastante conhecido na política europeia e nos mercados financeiros, se ela o afirmava, era porque era certo. O "Homem" estava tão morto como um peru na véspera de Natal.

O "Homem" tinha sido uma inspiração para uma geração de políticos europeus. E, embora a "Chefe" não tivesse nunca trabalhado directamente com ele, o seu falecimento tocava-a também.

No fim de contas, a sua morte era também a morte de uma forma de viver a Europa. Uma forma de vida que populações e elites haviam partilhado e onde todos pareciam aceitar (mesmo que tal não fosse uma verdade absoluta) que na Europa a solidariedade unia, que a cooperação reforçava e que a concorrência estimulava as nações e a União.

Enfim, mas eu sabia tão bem quanto a “Chefe” que isso eram memórias de épocas de crescimento económico. Outras épocas, como as que já não víamos há muitos anos, hoje um vírgula qualquer coisa era a norma percentual do “crescimento”.

Olhando para os olhos da "Chefe", não havia dúvida que ela, como tantos outros, também se devia interrogar sobre como era possível a Europa de hoje ser tão diferente da Europa do "Homem"?

***

Bruxelas, alguns anos mais tarde, quase vésperas de um Natal, entre um futuro próximo e um futuro imediato, uma reunião no pós-final do Conselho Europeu, encontro dos primeiros-ministros e dos chefes de Estado da zona Euro.

Como sempre, ainda nada se havia decidido e já só faltavam algumas horas até que fossem duas da manhã na Europa e a bolsa abrisse em Tóquio à espera de alguma decisão que permitisse apaziguar os mercados financeiros sobre o último problema da zona Euro.

Na realidade, “Ela” sabia que seria apenas mais um problema numa velha série cronológica e ainda sem fim determinável. Um problema para ser lidado, mais uma vez, numa reunião à porta fechada, sem que haja votos, para que pudesse haver uma decisão consensual, onde nenhum dos membros registe formalmente o seu desagrado. O velho eixo continuava a ter que funcionar para que o menor denominador comum fosse, como sempre, o objectivo a atingir e sem que ninguém se queixe de estar sujeito ao jugo de um qualquer poder estrangeiro. Hoje, como tantas vezes antes, haveria um acordo consensual, sem que nada realmente de importante fosse alcançado.

“Ela” estava tão farta de tudo isto e, a julgar, pela cara dos colegas dos países do sul e do norte da Euro zona, também todos eles estavam cansados de horas de reuniões e fartos deste status quo. 

Toldada pela fadiga de discussões intermináveis que só poderiam ter um fim – pois todos sabiam não haver alternativa – olhou para os restantes pares à volta da mesa e disse “Meus senhores e minhas senhoras vou-me ausentar momentaneamente, não esperem por mim para decidirem”. Esboçou um sorriso, levantou-se e dirigiu-se para a sala contígua. Entrou, fechou a porta atrás de si, pegou num copo, encheu-o de água quente e colocou o chá numa lenta infusão. Deixou-se afundar no sofá, fechou os olhos, durante uns breves segundos, inspirou fundo, abriu, ou julgou abrir, os olhos e deteve o seu olhar na cadeira à sua frente.

A reacção imediata foi a de incredulidade, tal como quando acordamos de um sono breve e não sabemos bem onde estamos. Mas olhando para trás de si teve a certeza de estar no mesmo local onde se havia sentado há segundos atrás.

No entanto, teve algumas dúvidas sobre o ano em que se encontrava, pois à sua frente, sentado e olhando para si, tinha a figura do “Homem”. Fosse um sonho, ou fosse real, o que foi verdade é que o “Homem” disse-lhe: "que bom revê-la minha amiga".

Há momentos na vida onde o impossível acontece e, de algum modo, o impossível estava a acontecer. "Ela" estava aqui nesta reunião, em Bruxelas, com um personagem da história contemporânea, falecido, morto e enterrado, mas ao mesmo tempo sentado à sua frente com o sorriso e a boa presença que sempre havia manifestado perante as crises europeias mais complicadas e de desfecho mais imprevisível.

– Cara amiga, parece que temos o mesmo problema de sempre – disse o “Homem”, sorrindo. – Parece que isto não funciona, esta União assemelha-se cada vez mais a uma desunião.

– Como? – perguntou “Ela” ainda incrédula sobre o que estava a viver.

– As coisas nunca foram fáceis, mas hoje estão ainda piores do que no meu tempo – reafirmou o “Homem”.

Há momentos em que, sem compreender bem porquê somos impelidos em aceitar o jogo que o tabuleiro da vida nos convida a jogar e, para “Ela”, este era um deles. Pensou que tanto fazia que estivesse a dormitar, a pensar ou a viver realmente aquilo, aceitava jogar este jogo, e assim resolveu continuar o diálogo.

– Sim, é verdade há mais de dez anos que jogamos este jogo – disse “Ela”. – A bem dizer foi iniciado por si, este jogo de “faz de conta que o Euro pode funcionar tal como foi criado”.

– Aceito a crítica ou a paternidade – respondeu com cordialidade o “Homem”. – Mas mesmo sabendo que a introdução do Euro numa zona monetária comum foi um grande erro, o mesmo se aplica hoje a desfazer esse erro. Não concorda, minha cara amiga?

– Sim – respondeu “Ela”. – Sim, todos sabemos que qualquer tentativa de desmantelar o Euro causaria uma avalanche de consequências económicas adversas. Para os nossos amigos periféricos a sul, a renacionalização da política monetária permitir-lhes-ia desvalorizar a sua moeda, mas deixá-los-ia com um serviço de dívida em euros para o próximo século.

– É verdade – retorquiu o “Homem”. – Uma vez adoptado o Euro toma-se consciência de que não se pode mais desvalorizar a moeda. Em vez disso, tem de se entrar numa espécie de desvalorização interna, em ordem a compensar os défices comerciais, um ajustamento.

– Há quem lhe chame eufemismo a esse “ajustamento” – comentou “Ela”. – Pois, na prática o que quer dizer é aplicar vastos cortes tanto ao sector público quanto aos salários. A menos, é claro, que de algum modo os governos deles sejam capazes de aumentar os impostos sobre os maiores rendimentos e riqueza.

– Poderia ser uma alternativa, mas a minha liberalização dos mercados financeiros e a vossa inabilidade de harmonizar regras fiscais na União só nos trouxe o Depardieu, o dos filmes – respondeu o “Homem” aludindo à fuga de riqueza nos países que tentam subir impostos.

– Podíamos ficar aqui a noite e madrugada à conversa, mas porque decidiu “visitar-me” logo hoje?

– Porque a menos que algo seja feito podemos estar a viver os últimos anos da União e isso é razão suficientemente forte para que a “visite”.

– O fim aproxima-se? – perguntou “Ela” com um ar trocista.

– Os fins são sempre princípios de algo, tudo depende se o que se inicia é melhor ou pior do que o que temos antes.

– E o que se avizinha é pior do que isto? – perguntou “Ela”. – Pior do que uma zona Euro totalmente ineficiente em capacidade de governo? Que o falhanço das autoridades europeias e nacionais em regular a indústria financeira? Que os governos terem de salvar os bancos privados com dinheiros públicos e assim terem entrado em crises fiscais sucessivas, as quais, por sua vez, permitem aos bancos lucrar com os empréstimos a esses mesmos governos?

– Tenho de admitir que sou tanto responsável pelo Euro como pela credulidade em que o crescimento económico seria permanente e que a vontade política de dotar a zona Euro dos mecanismos necessários surgiria à medida que as necessidades surgissem – anuiu o “Homem”. – Fui vítima do meu Europeísmo optimista – reconheceu. – Mas sabe minha amiga, sempre achei que sendo a União assente na solidariedade e na recusa da dominação, nunca seria possível aceitar uma lógica de divergência de desenvolvimento e que todos trabalhariam para impedir esse efeito do Euro. Enganei-me e, por isso, estou aqui hoje para dizer o que diria se estivesse ainda vivo e pudesse dar entrevistas – riu-se o "Homem".

– Realmente, deixou-nos uma bela herança. Como se lembra, caso um país ou grupo de países quisesse controlar a economia e a política de outro, era necessário ocupá-lo militarmente. Com o vosso Euro isso deixou de ser verdade. Hoje é perfeitamente possível ter relações pacíficas com um dado país europeu e literalmente ser dono dele, simplesmente por via da apropriação da sua economia através de um superavit comercial permanente e destruindo a sua soberania retirando-lhe autonomia legislativa e orçamental.

– É precisamente por isso que resolvi “pedir-lhe” esta conversa. Somos chegados a um daqueles raros momentos onde o dever moral coincide com o interesse de longo prazo. Em que se afigura necessário mudar algo radicalmente.

– Já percebi – respondeu “Ela”. – Vai-me convocar para assumir aquilo que todos sabemos ser certo teoricamente mas impossível na prática. Ou seja, saio daqui entro na sala ao lado e digo-lhes: "tive uma conversa com o espectro do “Homem” e ele disse-me para vos comunicar que é imperioso que 'sacrifiquemos parcialmente a nossa soberania e recursos económicos, em nome de criar uma capacidade aumentada de governação ao nível Europeu, para podermos resgatar os estados membros intervencionados e subsidiar a sua recuperação económica, bem como aliviar a miséria das suas condições sociais, por forma a apaziguar a indústria financeira e evitar um aumento de juros, em ordem a consolidar a zona Euro e, eventualmente a União'". Estive bem? – perguntou ela ao “Homem”.

– Minha cara amiga, não estamos em tempos de pedir os impossíveis a homens e mulheres políticos, mas com “p” pequeno. Se fosse para dizer isso não teria vindo, teria manifestado a minha vontade de outro modo. Se aqui estou é porque tenho algo mais a dizer-lhe e não é de certeza o que a minha outra velha amiga inglesa, alcunhada de “TINA, there is no alternative”, lhe diria. As nossas famílias e origens são outras.

– Surpreenda-me então.

– Não tenho surpresas, pois estou apenas a cumprir a velha tradição da União de dizer ou escrever o evidente em forma de relatório, neste caso um relatório oral. O que não faltam é alternativas para o “não há alternativas”. Vejamos: um primeiro passo estaria na harmonização de taxas directas para desincentivar o investimento estrangeiro motivado apenas pelo tipo de legislação laboral e industrial e também desincentivar a mobilidade de capital, pois a mobilidade é hoje do capital e não de pessoas.

– Continue, por favor – disse “Ela”.

– Com prazer. Os défices orçamentais podem ser corrigidos sem ser por medidas de austeridade ou desvalorização interna; podem ser resolvidos pelo aumento de taxas nos rendimentos ultra elevados e na riqueza, por exemplo forçando os mais ricos a comprar dívida pública nacional. Ou trocar as taxas fixas sobre o consumo por taxas progressivas calculadas sobre o rendimento anual menos poupança e investimentos (documentados é claro) por forma a reduzir a desigualdade dos consumos dos mais ricos versus os consumos dos mais pobres.

– Interessante.

– Sem dúvida, em particular para os que perderam vários salários no sul desde que tudo isto começou – disse o "Homem", como quem devolve um cumprimento. – Mas há mais. Porque não tornar Europeu o actual sistema de segurança social nacional? Isso faria mais pela Europa e pelas finanças nacionais de muitos países do que muitas das medidas que vos quebram a cabeça nessas vossas reuniões infernais.

– Continue, estou a tirar notas.

– Mais, sem violar o principio de subsidiariedade, poder-se-ia criar legislação europeia que especifique um máximo permissível de coeficiente Gini de desigualdade para as sociedades dos estados membros, tudo isto com um nível inversamente ligado ao seu PIB per capita.

– Sem dúvida arrojado – riu-se "Ela" e pensou nas caras dos colegas se lhes dissesse tal e qual o que estava a ouvir.

– Arrojado? Espere até ouvir esta – sorriu o “Homem”. – Os bancos comerciais europeus deveriam ser proibidos de aceitar depósitos de investidores financeiros que possam ser identificados como tendo origem em outros países europeus com problemas de dívida pública. Tudo isto pode e podia ter sido feito, mesmo sem nos centrarmos nos famigerados e, como sabemos, necessários Eurobonds ou qualquer outro nome que lhe queiram chamar, para resolver esta trapalhada de uma moeda única sem políticas e orçamentos únicos.

–Tem toda a razão – respondeu “Ela”. – O problema é que para acontecer temos de mudar de mentalidades. Teríamos de mudar daquilo que, num artigo já com uns anos, Claus Offe chamava “nacionalismo metodológico”, isto é, uma forma de pensar em “nação versus nação” e substituí-lo por “perdedores versus vencedores” da crise, ou mesmo, porque não substituí-lo por uma dimensão sócio-económica de “classe versus classe”. Arrojado não acha? À altura das suas propostas – disse “Ela” sorrindo.

De repente “Ela” deu um salto, a chávena de chá havia-se entornado sobre as suas pernas queimando-a ligeiramente, sacudiu o líquido, levantou a cabeça para pedir desculpa ao “Homem”, mas não estava ninguém naquela sala.

Lembrava-se da conversa como se tivesse acontecido, mas pensou que provavelmente tinha sido um daqueles sonhos, produto da fadiga e do adormecer intermitente, em que ao acordar nos lembramos de tudo.

Caminhou de regresso à sala onde os seus pares da zona Euro se encontravam reunidos e pensou se valeria, ou não, a pena usar os argumentos do sonho, quem sabe não haveria outros que tivessem sonhado o mesmo que ela.

Boas Festas!

Nota: este texto foi inspirado na obra de Charles Dickens Um conto de Natal e numa livre adaptação dos argumentos e análise expressos por Claus Offe no seu artigo "Europe Entrapped" publicado no European Law Journal em Setembro de 2013.

O autor é docente do ISCTE-IUL em Lisboa e investigador do Centre d'Analyse et Intervention Sociologiques (CADIS) em Paris.

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