Um ben-u-ron, um livro e um saco de batatas

Paulo Núncio, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, anda a aprender umas coisas com Yanis Varoufakis.

Aqui há uns tempos, Varoufakis enviou para o Eurogrupo um conjunto de propostas de reforma, entre as quais uma que previa que as donas de casa, turistas e estudantes trabalhassem à paisana para o Fisco. O objectivo era colocar gravadores e câmaras de filmar escondidos nos ditos inspectores e estes faziam de conta que eram clientes e tentavam detectar situações de fraude e de evasão fiscal no comércio na Grécia. Claro está que o bem-intencionado Varoufakis foi alvo da chacota internacional e a ideia caiu por terra. Mas esta coisa de gravar conversas à socapa parece que lhe está no sangue. Ainda há dias foi notícia que Varoufakis gravou às escondidas com o seu smartphone as conversas que teve na reunião de Riga com os seus colegas do Eurogrupo.

Claro que Paulo Núncio não andou a ver tantos filmes de James Bond como o ministro grego. Mas em Portugal está a passar-se uma situação semelhante com o Fisco. A máquina fiscal quer que nós façamos o trabalho dos inspectores do Fisco, sem receber nada em troca e, ao final do dia, ainda somos enganados porque muitos de nós estamos a pagar mais impostos do que aquilo que deveríamos efectivamente estar a pagar. Já não bastava ter de trabalhar seis meses por ano só para pagar os impostos ao Fisco, como agora ainda temos literalmente de trabalhar para o Fisco o resto do ano. Vamos por partes.

Hoje em dia se formos às compras, por exemplo, a uma grande superfície comercial, podemos levar num cesto de compras um ben-u-ron, para as dores de cabeça, um livro escolar para a educação do nosso filho e um quilo de batatas, para o jantar. Quando chegamos à caixa, se pagarmos todos os artigos de uma só vez e pedirmos uma única factura, as três despesas são contabilizadas como uma única para efeitos fiscais e são creditadas no sistema como “despesas gerais familiares”, o que naturalmente acaba por prejudicar o contribuinte. As “despesas gerais familiares” têm um tecto de 250 euros e são facilmente atingíveis por qualquer contribuinte, bastando para tal que durante o ano faça compras no valor de 715 euros para ter direito à dedução integral. Basta pagar ao longo do ano as contas da luz, água e telefone.

Para pagar menos impostos, através de uma maior dedução, a decisão mais racional para o contribuinte seria pedir três facturas em separado quando chega à caixa do supermercado: uma para o ben-u-ron (que vai para as deduções com a saúde, que tem um tecto mais generoso e mais difícil de atingir de mil euros), uma para o livro escolar (que também tem um tecto generoso de até 800 euros por agregado) e outra para as batatas (essas sim, vão para o saco das “despesas gerais familiares”). Claro que este é um sistema complemente impraticável. Se chegar à caixa à hora de ponta e pedir ao funcionário uma factura para cada compra que fizer, o senhor ou a senhora são capazes de me insultar e com toda a razão. E a confusão e a dor de cabeça serão tais que vou precisar de engolir o ben-u-ron na hora.

O mais caricato com o sistema do e-factura é que mesmo pedindo uma factura desagregada, a despesa em causa poderá não ser creditada na nossa dedução de IRS se a empresa em causa não tiver aberto um registo de actividade que a permita vender esse produto. Por exemplo, se for ao tal supermercado e comprar o tal livro escolar e se o supermercado não tiver um registo do CAE (Código de Actividade Económica) corresponde a materiais escolares, então as minhas despesas não serão consideradas como sendo de educação para efeitos fiscais. Então o que recomenda o Fisco? Diz que o contribuinte ao detectar a falha deve telefonar imediatamente para os serviços das Finanças para que a Autoridade Tributária obrigue a empresa em causa a registar o CAE em falta. Por esta altura do campeonato a confusão é tal que o contribuinte irá precisar de engolir mais um ben-u-ron.

O melhor é mesmo ir à farmácia e comprar qualquer coisa mais forte para a dor de cabeça. Depois de um dia de trabalho, ainda ter de trabalhar para o Fisco dá cabo da saúde de qualquer pobre contribuinte. Claro que chegado à farmácia espera-o uma outra aventura.

Isto porque as despesas de saúde com IVA a 23%, mesmo com receita médica, deixaram no início do ano de poder ser dedutíveis, passando a ser dedutíveis apenas os gastos com IVA a 6%. O que significa que se o farmacêutico me aviar um medicamento com IVA a 6% e outro com IVA a 23% na mesma factura, a de 6% deixa de ser elegível para efeitos de deduções de saúde. O que significa, tal como no supermercado, que vou ter de comprar os dois medicamentos em separado. A confusão tem sido tal, e tendo em conta que já vamos a meio do ano, que o Governo teve de voltar atrás e mudar a lei, ou seja, os medicamentos com IVA a 23% prescritos pelo médico voltam a dar benefício fiscal. Quando a máquina não se adapta à lei, não se muda a máquina, muda-se a lei. Mesmo assim, os problemas não terminaram. Se quisermos aviar uma receita de um medicamento com IVA a 6% e outro a 23%, mas este sem receita médica, lá teremos de pedir novamente facturas desagregadas para não sermos prejudicados nos impostos. E vai mais um ben-u-ron.

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