Um analfabeto que sabe ler e escrever

Um senhor de 72 anos, analfabeto, vai a uma agência bancária e pede para fazer um depósito a prazo. Conta a CMVM que este senhor, além de não ter qualquer escolaridade, não tinha nenhum antecedente de investimento em instrumentos financeiros de risco. Mas a verdade é que este senhor saiu do banco, não com o desejado depósito a prazo, mas como subscritor de um produto financeiro altamente complexo cuja rentabilidade “nos primeiros três anos correspondia a uma taxa fixa, nos dois anos seguintes estava indexada à rentabilidade de um fundo de investimento em acções e nos anos posteriores variava em função da Euribor”. O senhor saiu da agência com os olhos trocados, mas convencido que ia para casa bem aviado.

Esta história, que é real e é contada na página de Internet da CMVM, acaba como se imagina que vai acabar: um dia o senhor apercebeu-se que ficou com menos dinheiro do que aquele que tinha investido e foi queixar-se ao banco. Foi-lhe dito que a perda se devia à crise nos mercados, explicação que o cliente não aceitou uma vez que ele queria apenas um depósito a prazo.

O caso passa de dramático a anedótico quando o senhor faz uma queixa à CMVM, que por sua vez confronta o banco com o facto de ter vendido um produto altamente complexo a quem não tinha esse perfil. A instituição bancária em causa (que infelizmente a CMVM não identifica) terá argumentado que entregou ao cliente o prospecto do produto e que ele tinha lido o boletim de subscrição que continha inclusive a impressão digital do cliente. Perante este facto, a CMVM questionou o banco de como poderia o cliente ter lido e percebido o prospecto se o senhor era analfabeto? Perante o embaraço, o banco lá respondeu que o “prospecto tinha sido lido em voz alta ao cliente e que este tinha compreendido as características do investimento”. Resumindo, o senhor era analfabeto, mas o banco partiu do pressuposto que ele estaria à vontade com conceitos como knock-out, short selling, vega, theta, swaps, mark-to-market ou plain vanilla.

Esta história vem a propósito da decisão tomada esta semana pelo governador do Banco de Portugal por causa do impacto que as taxas de juros negativas poderiam ter nos contratos de crédito à habitação. Ao contrário do que pretendiam os banqueiros, Carlos Costa decidiu, e de uma forma sensata, que os bancos teriam de respeitar e honrar os contratos feitos com os clientes, ou seja, se a Euribor passar a negativa os bancos terão de repercutir esse benefício na prestação mensal paga pelos clientes. Isto para os contratos em vigor. Já para os novos contratos, o governador do Banco de Portugal diz que apesar de a lei não permitir que os bancos possam colocar um floor ou um travão à evolução negativa das taxas, podem comercializar junto dos seus clientes contratos financeiros derivados que compensem a perda provocada pela queda da Euribor.

Carlos Costa está a sugerir que os bancos façam hedging ou uma operação de cobertura de risco. Para que aquilo que venham a perder no crédito à habitação, devido ao impacto da Euribor negativa, possam ganhar no produto derivado que vão vender ao cliente. Nunca se viu tamanho disparate e tamanha irresponsabilidade. Na prática, o governador está a sugerir que a banca venda aos clientes que peçam dinheiro para comprar casa produtos financeiros altamente complexos para que os bancos não tenham de incorrer em nenhuma perda quando as taxas evoluem em sentido que lhes é desfavorável. Seria abrir a porta a um subprime à portuguesa.

Aqui não se trata tanto de um problema de incompetência do governador do Banco de Portugal. O que está aqui em causa é que o Banco de Portugal está somente preocupado com o seu papel de supervisor prudencial (em que tem de velar pela capitalização, rentabilidade e cumprimento dos rácios de solvabilidade dos bancos), ignorando completamente o seu papel de supervisor comportamental (onde lhe é exigido que defenda os interesses dos clientes). Esse comportamento desequilibrado já foi bastante visível no caso BES. Quando foi o aumento de capital, em vésperas do colapso do BES, o governador estava preocupado em capitalizar o banco com urgência, e negligenciou o risco dos milhares que compraram acções e que depois perderam tudo. No caso da comercialização do papel comercial idem aspas. E depois assistimos a um jogo do passa-culpas entre a CMVM, que faz o papel de regulador bom, e o Banco de Portugal, que faz o papel de regulador mau. A CMVM (que veste a pele de regulador comportamental) acha que os clientes do papel comercial deveriam ser ressarcidos só não sabe muito bem como, e o Banco de Portugal (que aparentemente só se preocupa com a supervisão prudencial) acha que não, já que isso poria em causa os rácios de capital do Novo Banco.

Há cinco anos, o Governo socialista chegou a propor num Orçamento do Estado a criação um modelo de supervisão denominado twin peaks, que na prática separava a supervisão prudencial da parte comportamental. O Banco de Portugal ficava apenas com a supervisão prudencial e criava-se uma nova entidade que juntasse a CMVM e o regulador dos seguros que ficaria responsável pela parte comportamental, ou seja, por uma efectiva protecção e defesa dos direitos dos clientes. Com tantos atropelos aos direitos dos clientes e dos investidores e com ideias patetas e perigosas como esta de comercializar derivados no crédito à habitação, se calhar chegou a altura de ressuscitar o modelo twin peaks. E colocar pessoas competentes à frente dos reguladores também era capaz de ajudar.

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