Tudo num fósforo

No início do século passado havia um homem chamado Ivar Kreuger, sueco de nacionalidade, que se especializou inicialmente em produzir fósforos.

Na raiz da sua fortuna havia uma inovação: os fósforos de segurança vermelhos, que conhecemos hoje, superiores aos anteriores de fósforo amarelo que podiam acender-se sozinhos acidentalmente. A procura e utilização de fósforos era naqueles tempos praticamente fixa, o que tornava aquele mercado muito apetecível como monopólio.

A outra parte da história é que, após a I Guerra Mundial, havia países para reconstruir e alguns que eram independentes pela primeira vez. Ivar Kreuger viu aí uma oportunidade. Era fácil para ele fazer um empréstimo soberano à Polónia, por exemplo, em troca do monopólio dos fósforos naquele país. E depois era fácil usar esse monopólio para subir o preço dos fósforos, uma vez que toda a gente precisava deles e não havia como substituí-los de maneira prática. Kreuger seria reembolsado duas vezes: pelos estados e pelos consumidores.

Jean Monnet, que conheceu Ivar Kreuger no tempo da Sociedade das Nações, conta nas suas memórias que um dia em Paris a questão era a de como fazer um empréstimo de 30 milhões de dólares à Roménia (hoje seriam cerca de 300 milhões de euros). Kreuger pediu cinco minutos, foi para um canto do escritório escrevinhar com um lápis nas mangas engomadas da sua camisa, e regressou de rosto impassível: “senhores, podemos avançar”. Jean Monnet perguntou-lhe como chegara àquela conclusão. “É muito simples”, respondeu Ivar Kreuger, “calculei que se tirasse um fósforo de cada caixa recuperaria o dinheiro”. Noutra ocasião usou a sua expressão favorita: “posso emitir obrigações e ganhar monopólios de estado em todo o mundo — there is no end”. Não há fim.

Só que há, sempre, um fim. Com a Grande Depressão, descobriu-se que as empresas de Ivar Kreuger deviam umas às outras dinheiro que agora não havia. As compras que ele fazia pagava-as com as suas ações. A contabilidade era secreta. Ninguém sabia quanto ele valia. Muitos dos seus negócios eram de legalidade duvidosa, e alguns eram decididamente ilegais, fraudes e burlas e falsificações: para cobrir um empréstimo de 75 milhões à Itália que estava planeado (cerca de um mil milhões de euros, em dinheiro de hoje), Kreuger tinha documentos nos quais falsificara a assinatura do ministro das finanças daquele país. Foram encontrados no seu cofre quando em 1932, após o desmoronar dos seus esquemas, Kreuger se suicidou. Há também quem diga que o mataram. Certo é que muita gente perdeu as poupanças no “Kreuger Crash”. Os seus empréstimos na banca sueca valiam metade das reservas do país, e em todo o mundo havia detentores de papéis Kreuger que não valiam agora nada.

Ao recordar isto hoje, não se pode evitar reconhecer como uma geração de crença na superioridade dos capitalistas nos fez recuar para os tempos de Ivar Kreuger. Sem inverter esse predomínio ideológico do mercantil sobre o social será impossível sair do pesadelo em que nos encontramos. E até lá, será também impossível ler sobre o BES e Ricardo Salgado sem pensar que estamos outra vez nessas trevas do capitalismo onde impérios desaparecem num fósforo e quem se queima são os cidadãos comuns.

 

NOTA: Onde estava, erradamente, "hoje seriam mais de 300 mil milhões de euros", para a estar "hoje seriam cerca de 300 milhões de euros";  e onde estava "mais de um bilião de euros, em dinheiro de hoje", passou a estar "cerca de um mil milhões de euros, em dinheiro de hoje"

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