Três anos depois, ainda há bons negócios atirados para a falência

Endividadas, demasiado expostas ao mercado interno, falidas. Ainda é este o retrato de muitas empresas nacionais, apesar das promessas feitas pelo Governo. Novas reformas se avizinham.

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José Morgado Henriques, o dono da nova Papelaria Fernandes José Maria Ferreira

A maior papelaria do país era assim. Quase 10.000 metros quadrados de armazém e fábrica de onde saíam aos milhares as icónicas Sebentas Escolares, os livros Flecha, os blocos Cavalinho. Perto de 400 trabalhadores, mais de 20 lojas. Estava cotada em bolsa e tinha projectos em Angola. Até que, um dia, as máquinas pararam. E, em menos de dois anos, a centenária Papelaria Fernandes ficou reduzida a praticamente nada.

Como tantas outras arrastadas para a insolvência, a história desta empresa poderia bem ter ficado por aqui. Até porque, também como tantas outras, assumiu-se falida tarde demais, já a maquinaria estava obsoleta, os fornecedores e credores bancários desconfiados e a concorrência feroz. Quando o processo chegou aos tribunais, no início de 2009, havia 60 milhões de dívida por pagar.

Mas quem hoje entra da loja da Papelaria Fernandes em pleno Chiado, Lisboa, terá dificuldades em acreditar neste não tão longínquo passado. As sebentas e os Flecha lá continuam, vendidos como se de um pedaço de História se tratassem, a partilhar prateleiras com souvenirs de fazer parar turistas, tudo produção nacional. A maior papelaria do país já não é a mesma. O actual dono, José Morgado Henriques (que, no passado, detinha 24% da empresa), diz que está melhor.

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A transformação que liderou nos últimos anos está à vista. Depois de um investimento de 400 mil euros (e zero de crédito bancário), as duas lojas que restaram do processo de insolvência cresceram para cinco, onde, entre papel e canetas, montam-se exposições de arte. A sobrevivência da empresa acabou por salvar da morte outros dois espaços nobres da capital, a Papelaria da Moda e a Papelaria Desportiva, cuja memória foi preservada nas fachadas. São já 28 trabalhadores, receitas anuais de quase 1,5 milhões de euros e um primeiro ano de lucros, em 2013, a rondar os 50 mil euros.

O passado da Papelaria Fernandes tornou-se um lugar-comum nos últimos anos, em que quase 18 mil empresas viram a falência entrar-lhes pela porta. Já o presente, e o que se planeia para o futuro (mais lojas, quem sabe produção própria), nem tanto.

Pico de insolvências
Nos últimos três anos, as insolvências galoparam. Em 2011, ano da assinatura do memorando de entendimento com a troika, contavam-se 4418 novos processos nos tribunais. O número subiu 41% para 6236 no ano seguinte. E mais 5608 empresas seguiram o mesmo caminho em 2013. No primeiro trimestre deste ano, juntaram-se outras 1374. Não tiveram a mesma sorte da Papelaria Fernandes as históricas cerâmica Valadares e livraria Sá da Costa, a sapataria Charles ou as lojas da Maconde.

A vaga de falências judiciais no país não passou despercebida aos olhos do Fundo Monetário Internacional, Comissão Europeia e Banco Central Europeu. Logo no compromisso assumido com os credores em Maio de 2011, eram exigidas reformas que estancassem as insolvências e aumentassem a recuperação de empresas em dificuldades.

Naquela altura, estimava-se que 99% dos processos acabavam em liquidação, com consequências directas para o emprego e para a economia. O próprio Estado estava a ser lesado em muitos milhões de euros, já que ficavam por reaver as dívidas ao fisco e à Segurança Social.

A reforma fez-se. Nasceu um novo código das insolvências, mais voltado para a viabilização, focado em reduzir os tempos de espera das empresas, muitas vezes suficientemente longos para as condenar ao encerramento. E, com a revisão legislativa, surgiram dois mecanismos alternativos à insolvência que prometiam ser revolucionários, mas que continuam sem cumprir totalmente as ambições com que foram desenhados: o Processo Especial de Revitalização (PER) e o Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (Sireve).

A própria troika foi aumentando o tom das críticas aos dois programas nas últimas avaliações, avisando que as empresas continuam a recorrer demasiado tarde e que há obstáculos por ultrapassar, nomeadamente os bloqueios que o fisco tem colocado à recuperação, quando se pede perdões ou pagamentos faseados da dívida. E, por isso, uma nova fase da reforma está agora em curso.

Reformas em curso

O Governo fechará em breve um conjunto de medidas que incluirão uma revisão do PER e do Sireve, mas que não ficam por aqui. Há outras áreas que o executivo colocou em alerta vermelho, especialmente a necessidade de capitalizar as empresas e de acabar de uma vez com o sobreendividamento.

Dados do Banco de Portugal, relativos aos dois primeiros meses deste ano, mostram que a dívida global das empresas privadas nacionais superava os 306,6 mil milhões de euros (117,5 mil milhões dizia respeito a créditos junto do sector financeiro). A desalavancagem tem acontecido, mas a um ritmo muito menor do que o imprimido pelos particulares. Já o rácio de crédito vencido nas pequenas e médias empresas (PME) duplicou em apenas dois anos, tendo alcançado 15,7% no final de 2013.

O Governo prepara-se para lançar novos fundos para empresas estranguladas financeiramente, mas economicamente viáveis. Um balão de oxigénio que se somará aos 220 milhões de euros de dotação do Revitalizar, destinado a negócios em crescimento e que, em menos de um ano, já tem cerca de 75 milhões comprometidos.

A tábua de salvação
Os balanços desequilibrados, construídos em cima de crédito bancário sentenciaram muitas empresas. Mas outros factores vieram a jogo, como o facto de muitas delas serem totalmente dependentes do mercado interno, o que as deixou sem fôlego durante a crise. Apesar de o número de empresas exportadoras ter aumentado 20% entre 2010 e 2012, apenas 5,5% do total vende para o exterior. É, porém, esta pequena franja que mais tem crescimento em termos de facturação e de postos de trabalho criados.

À medida que as medidas de austeridade foram diminuindo o poder de compra e retraindo o consumo, alguns sectores não só compensaram a queda por via das exportações, como conseguiram crescer apesar da crise. Foi o que aconteceu, por exemplo, com os vinhos, o têxtil ou as conservas (ver texto ao lado).

Um dos sinais da retoma que se começa a fazer sentir no país é, precisamente, o da redução das insolvências, que começaram a abrandar no final do ano passado. Por outro lado, o saldo líquido entre a criação e o encerramento de empresas tem melhorado, tendo atingido 15.466 sociedades no final de 2013. No primeiro trimestre deste ano, foi de 5730, de acordo com dados do Ministério da Justiça. Esta melhoria não tem tido, porém, reflexos do mesmo nível ao nível do desemprego, já que as novas sociedades têm menos postos de trabalho.

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