TAP tem 100 milhões de euros retidos pelo Governo da Venezuela

Conflito entre o país e a indústria da aviação também afecta a transportadora aérea nacional, que só em Julho recebeu uma parte do dinheiro que gerou com a venda de bilhetes em 2013. Maioria da dívida está por pagar.

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TAP tinha planos para reforçar número de ligações a Caracas em Julho, mas recuou na intenção Rui Gaudêncio

A TAP é uma das companhias envolvidas no conflito que opõe o sector da aviação à Venezuela. A transportadora aérea reclama uma dívida de cerca de 100 milhões de euros ao Governo liderado por Nicolás Maduro, que tem retido no país as receitas provenientes da venda de bilhetes de avião. Ao contrário do que já fizeram outras companhias, a TAP não pretende rever a operação venezuelana, na expectativa de recuperar a totalidade do dinheiro. E tem contado com uma forte intervenção do Governo português, que confirma estar a seguir “coordenada e empenhadamente este dossier”.

O braço-de-ferro entre a Venezuela e as companhias de aviação devido à retenção de receitas no país e à imposição de câmbios mais gravosos face ao dólar tem feito correr muita tinta. E poucas têm sido as transportadoras a divulgar os montantes que reclamam para não perturbar a já frágil e instável relação com o país. A TAP usou a mesma estratégia, recusando-se a revelar publicamente quanto dinheiro tem retido no país. O PÚBLICO apurou, junto de duas fontes ligadas às negociações, que o valor ronda os 100 milhões de euros.

A dívida já foi superior, mas reduziu-se ligeiramente no início do Verão, quando o Governo venezuelano libertou dinheiro para um grupo de transportadoras aéreas, da qual a TAP fez parte. As remessas diziam respeito a vendas geradas em 2013. Fonte oficial do gabinete do vice-primeiro-ministro, que tem liderado as negociações do lado do Governo português, confirmou que “já houve dois pagamentos”, adiantando que “estão já autorizados outros dois, dentro de uma calendarização que tem merecido frequentes contactos bilaterais”.

As negociações têm contado com elementos da companhia, nomeadamente o responsável pela operação em mercados da América Latina, e com o apoio do Governo. Fonte oficial do gabinete de Paulo Portas explicou que “o assunto tem, de facto, sido abordado nas últimas comissões mistas com o Governo da Venezuela, que do lado português são presididas pelo vice-primeiro-ministro”, acrescentando que o seu gabinete, bem como os dos ministros dos Negócios Estrangeiros e da Economia têm “seguido coordenada e empenhamente este dossier”.

A mesma fonte acrescentou que “a  orientação tem sido a de fazer – em estreita articulação com a administração da TAP – todas as diligências no sentido de uma solução positiva para o caso”, recordado que “uma vasta comunidade de emigrantes portugueses vive na Venezuela e usa os serviços da transportadora”.

No entanto, as interacções têm sido dificultadas pelo facto de não haver a desejada estabilidade do lado venezuelano, com constantes mudanças de interlocutores. Um dos membros do Governo venezuelano mais activo nestas negociações tem sido Rudolfo Marco Torres, que é desde Janeiro o ministro das Finanças, Economia e Banca Pública de Nicolás Maduro.

A TAP voa para a Venezuela desde o início dos anos 80 e tem, actualmente, três frequências semanais para Caracas, a capital do país, que sobem para quatro no Verão. Este ano chegou a estar planeado um reforço da operação para cinco frequências, mas a intenção não avançou. Contactada pelo PÚBLICO, a única resposta dada pela companhia referia que “a rota de Caracas não está em dúvida” por causa deste conflito.

Voos da TAP mantêm-se
Haverá dois principais motivos para que assim seja. Por um lado, a transportadora aérea tem a expectativa de receber todo o dinheiro em dívida. E, por outro, imitar as companhias que suspenderam ou reduziram a operação acarretaria riscos políticos. Há muitos emigrantes portugueses no país (são cerca de 400 mil) e a decisão abalaria as relações diplomáticas.

Nem todas as companhias têm tido estas questões em conta. A Air Canada foi a única que suspendeu totalmente as operações, logo em Março. Mas muitas, como a Alitalia, a American Airlines e a Lufthansa, reduziram drasticamente o número de voos. A Associação Internacional do Transporte Aéreo (IATA, na sigla em inglês) referiu ao PÚBLICO que “face ao pico de operação do ano passado, a capacidade oferecida caiu 49%”.

Os 100 milhões de euros reclamados pela TAP fazem parte de um bolo muito maior. De acordo com a associação internacional, a dívida das 13 companhias de aviação afectadas, depois de sete terem chegado a acordo com o Governo, ronda agora os 3500 milhões de dólares (2771 milhões de euros, ao câmbio actual). O valor tem vindo a reduzir-se, embora a um ritmo muito mais lento do que o desejado. Desde o início do ano, a Venezuela pagou 797 milhões de dólares (cerca de 631 milhões de euros), parte dos quais diziam respeito a vendas ainda de 2012, referiu a IATA.

A verba que a TAP recebeu faz parte destes montantes. A remessa aconteceu depois de, no início de Junho, o Governo de Nicolás Maduro ter aprovado a entrega de 162,3 milhões de euros a 14 empresas. Além da TAP, estavam nessa lista a Air France, a Iberia e a Delta, por exemplo.

Ainda ontem, o presidente da associação, Tony Tyler, afirmou, citado pelo canal privado de televisão Venevisión, que “as companhias aéreas querem ter mais confiança para oferecer mais serviços mas não o podem fazer, a menos que lhes paguem”. Ao PÚBLICO, a IATA falou de uma situação “sem precedentes” e sublinhou que “é insustentável operar num país onde o dinheiro que é gerado pelas companhias com a venda bilhetes fica retido por terceiros”, acrescentando que este conflito está a fazer com que a Venezuela “fique desligada da economia mundial e arrisque um isolamento ainda mais profundo”.

Maduro faz nova promessa
Desde 2003 que a Venezuela obriga as companhias de aviação a pedir autorização para repatriar o dinheiro gerado no país. As receitas com a venda de bilhetes são depositadas em contas geridas pelo Estado. O conflito entre a indústria da aviação e o Governo intensificou-se depois de terem sido suspensos os pagamentos, em Outubro de 2013.

Nicolás Maduro tinha garantido que iria regularizar a situação no início deste ano. No entanto, impôs condições com as quais as companhias não concordam. Além de querer pagar a um câmbio diferente do que vigorava quando os bilhetes foram vendidos (6,30 bolívares por cada dólar em vez de 4,30 bolívares), pretende aplicar uma nova taxa cambial ao sector. Na Venezuela, há taxas diferentes: a oficial e outras duas (SICAD I e SICAD II), atribuídas em função do sector de actividade. E o Governo decidiu que o transporte aéreo passaria a utilizar a última, que coloca cada dólar a valer 50 bolívares, a partir de Julho.

Foram também noticiados outros pormenores da proposta feita pelo Governo, que passavam por descontos até 20% no valor em dívida, a substituição do dinheiro reclamado por combustível para os aviões e um plano de pagamentos faseado que só terminaria em 2016.  

Inicialmente, Maduro reagiu mal à pressão das transportadoras aéreas, anunciando que iria tomar “medidas severas” contra a suspensão e redução de voos. “Se uma companhia decidir sair do país não voltará enquanto estivermos no Governo”, afirmou em Março.

Mais recentemente, o presidente venezuelano veio colocar água na fervura, garantindo que tinha dado ordens aos membros do Governo para que “sejam pagas as dívidas, empresa a empresa”. Ainda assim, acusou o sector de fazer “uma imposição de preços absurda”. As declarações foram recebidas com optimismo pela Associação das Companhias Aéreas da Venezuela, que emitiu um comunicado em que se dizia segura de que “com um diálogo aberto a soluções justas rapidamente poderá haver boas notícias para o país e para os venezuelanos”.

Este conflito tem sido muito penalizador para a população, em especial para a comunidade emigrante. Em Agosto, portugueses que vivem na Venezuela denunciavam à Lusa a escassez de lugares em voos internacionais, explicando que estavam a sentir dificuldades porque se viam impedidos de sair do país.

Nessa altura, o secretário de Estado das Comunidades, José Cesário, assumia que se tratava de um problema que o Governo conhecia “há algum tempo”, esperando que “venha a ter um desenvolvimento o mais breve possível”.

O PÚBLICO contactou a Embaixada da Venezuela em Lisboa para obter mais esclarecimentos sobre este tema, mas não obteve resposta.

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