TAP, o melhor de dois mundos e um alerta veemente a ter em conta

A voz de Rui Moreira deve ser ouvida com especial atenção quando se ergue de forma tão veemente como é o caso na presente questão da TAP.

1. A solução encontrada pelo governo para a TAP permite, à primeira vista, a associação do melhor de dois mundos. O Estado recupera capacidade de decisão estratégica e a gestão permanece no âmbito privado. Sem prejuízo de uma avaliação de carácter mais definitivo, após obtenção de esclarecimentos que serão disponibilizados nos próximos dias, parece ser já possível saudar como positiva a fórmula encontrada. Perante a decisão tomada pelo anterior executivo, os constrangimentos resultantes da aplicação das regras europeias da concorrência e a pressão exercida pelos partidos da extrema-esquerda, não se antevia fácil a resolução do assunto. No entanto, tudo indica que se tenha alcançado um final feliz, mercê de um misto de inteligência e diligência.

É claro que a partir de agora se vão colocar múltiplos problemas de ordem prática, de cuja resolução dependerá aliás um juízo público final acerca da bondade da intervenção estatal neste domínio. A primeira questão que se vai colocar, seja em tese, seja imediatamente em torno de casos concretos, é a de determinar a fronteira entre planeamento estratégico e gestão corrente da empresa. Até que ponto, por exemplo, a definição das rotas a explorar comporta elementos que relevam do âmbito estratégico? A resposta, qualquer que ela seja, dependerá sempre de uma definição preliminar das motivações últimas que justificam a participação do Estado no capital da empresa.

O sistema aeroportuário tem uma grande importância num país relativamente excêntrico em relação ao âmago da Europa, dotado de uma vocação atlântica historicamente comprovada e empenhado em ocupar um lugar de destaque nas redes de transporte internacionais. Num caso destes, os aeroportos concorrem fortemente para a organização e valorização dos territórios, seja pelo papel que desempenham no plano económico, seja pela função que lhes é cometida no domínio sociopolítico. Ora, a participação do Estado na administração da TAP só obtém plena justificação se resultar da prévia vontade de acautelar o nosso sistema aeroportuário nacional e os interesses mais latos que ele protege e serve. Não lembraria a ninguém reclamar tal presença estatal por meras razões de arrebatamento sentimental inspiradas numa qualquer versão do nacionalismo serôdio. Como tal, ao falarmos da TAP estamos no fundo a falar do modelo de país que queremos promover. Chegados aí, somos inevitavelmente confrontados com o velho antagonismo que opõe uma concepção do país altamente hierarquizada, com prevalência absoluta da capital, a uma outra, que obedece à ideia de uma multipolaridade assente numa valorização mais igualitária dos diferentes territórios. Ora, esta contraposição genérica adquire uma concretização muito precisa em torno da matéria que estamos agora a analisar: deve o Estado português preocupar-se preferencialmente − o que nalguns casos até significa exclusivamente − com a valorização do aeroporto de Lisboa, no plano internacional, ou, pelo contrário, deve garantir idêntico grau de preocupação com outros aeroportos, em particular, como é óbvio, com o do Porto? Se triunfar a primeira posição, então o esforço de participação do Estado na TAP limitar-se-á a servir para acautelar aquilo que tecnicamente se designa como o “hub” de Lisboa, à custa dos interesses do aeroporto do Porto; se prevalecer porém a segunda opção, terá então o Estado o dever de exigir à TAP um comportamento consentâneo com a salvaguarda dos interesses desta última infra-estrutura aeroportuária.

Quando falamos de aeroportos e de territórios estamos a falar de economia, de instituições e de pessoas. A área de influência directa do aeroporto Francisco Sá Carneiro, em termos populacionais, é no mínimo tão ampla como a do aeroporto de Lisboa; a sua capacidade de atracção de passageiros no país vizinho é aliás significativamente maior. Assim sendo, uma opção pelo encerramento de rotas provenientes ou tendo como destino esta estrutura aeroportuária releva claramente de uma dimensão estratégica que extravasa o simples campo da aviação comercial. Arguir-se-á que uma coisa é a preocupação de promoção da TAP no plano internacional e outra é a atenção que o Estado deve conceder ao objectivo da coesão territorial. Este argumento, a ser levado até às suas últimas consequências, daria razão a quem preconiza a privatização daquela empresa, a não ser que, por absurdo, se estabelecesse um consenso nacional sobre a vantagem de olhar exclusivamente para Lisboa e a sua região, atribuindo ao resto do país um estatuto de inferioridade política, económica e simbólica. Esta discussão tem que se fazer já para impedir que nos encontremos a breve trecho perante um facto consumado, como infelizmente tem sido regra no nosso país quando tratamos de assuntos desta natureza.

2. Uma vez mais, o presidente da Câmara Municipal do Porto actuou com prontidão e amplo conhecimento de causa perante a intenção anunciada pela TAP de encerrar algumas rotas que ligam o Porto a várias cidades europeias. Não é ainda altura para se fazer uma avaliação pormenorizada sobre a forma como Rui Moreira tem exercido o seu mandato autárquico, mas sempre se poderá desde já afirmar que em nada a sua actuação tem desmerecido as expectativas criadas. A experiência que temos vindo a observar no Porto reforça a convicção de que sendo os partidos imprescindíveis para a formação e a expressão da vontade política nacional, eles podem ser muitas vezes substituídos com vantagem por candidaturas independentes no plano autárquico. Curiosamente, daí poderão também advir proveitos para o próprio funcionamento dos partidos a nível nacional, se estes se passarem a organizar menos em torno de interesses locais e mais em função de genuínas afinidades electivas.

Rui Moreira, a quem nunca ouvi a mais pequena consideração imprópria para com os partidos políticos, e que tem revelado possuir uma elevadíssima cultura democrática e liberal, é hoje o homem de que o Porto precisa na presidência da respectiva Câmara. Da sua acção têm aliás resultado benefícios que extravasam em muito o horizonte da sua autarquia. A sua voz deve por isso mesmo ser ouvida com especial atenção quando se ergue de forma tão veemente como é o caso na presente questão da TAP.

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