Supervisão intrusiva

O supervisor, manifestamente atento e corajoso quando a coragem foi mais necessária, tem de forçar a substituição da governação do banco.

A semana negra que findou não se sabe se será seguida por outras. O banco mais prestigiado de Portugal, porventura o mais antigo banco comercial e aquele que manteve respeitabilidade e solidez por mais tempo, também o que acumulou mais poder económico e político, aproxima-se do momento da verdade, em que a teia de interesses que à sua volta se constituiu terá de ser desfeita.

Outras teias se seguirão em décadas futuras, mas, para que a aranha possa emitir os fios invisíveis, é necessário que sobreviva e não seja arrastada para o lixo por vassourada inclemente. Habituámo-nos, durante anos, a ver na primeira bancada do arco da governação políticos que estavam, haviam estado, ou viriam a estar, nas folhas de pagamentos do banco ou do grupo. Os convites eram quase irresistíveis, embora alguns tivessem recusas polidas. A discrição, recato da família, as ligações cruzadas, um eficaz controlo dos media, alimentaram uma lenda de solidez e respeitabilidade. Custa a crer como tal foi irremediavelmente perdido em dois anos, por meras intrigas e jogos palacianos de poder.

Um pesado lastro de solidez financeira escondeu durante muito tempo a realidade. Custa a crer como décadas de sabedoria e segurança foram vencidas por jogadores internacionais sem outra arma que a audácia e o vinagre. Negócios estranhos de estranhas consultorias feitas no estrangeiro a nacionais eram omitidos em declarações de imposto. Pinochet foi acolhido como depositante VIP. A cascata de holdings, difícil de destrinçar, permitiu durante décadas um engenhoso sistema de domínio minoritário, graças a silencioso e não menos respeitável parceiro estrangeiro.

Desaguisados familiares ampliados pelo fecho da torneira distributiva, agravados por indomáveis temperamentos, teriam disparado gatilhos vários. A família partiu-se, o regulador alertado há anos apertava as malhas do cerco inspectivo, a verdade patrimonial acabou por se impor. A fortaleza resistiu nomeando alcaides seus, sacrificando-os sem saída. O regulador, silencioso, não descansou até que novos alcaides lhe pareceram capazes de defender a fortaleza sem sapar as suas defesas. E tudo parecia começar a correr bem. Só que os terríveis mercados, aprovando os novos dirigentes, estranharam a demora da sua posse. O decurso deste tempo de espera foi fatal: simpáticos informantes foram destilando notícias preciosas: empréstimos vultuosos de participadas amigas, obtidos de favor; situação de progressivo incumprimento nas holdings obrigavam a vendas de activos, ainda assim em boas condições; os primeiros sinais de incumprimento surgiam nelas, envolvendo o banco sem razão, apenas pela proximidade do nome. A sagrada peça da trilogia, passaporte de êxito durante décadas, tornou-se de súbito em maldição viral.

A perda imensa do valor das acções e outros títulos passou a peça de noticiário internacional com o Financial Times em versão digital a dedicar-lhe toda uma página. Na quinta-feira foram suspensas as transacções bolsistas do grupo e do banco, conglomerado que os investidores não conseguem distinguir. A holding sedeada no Luxemburgo admite avançar com pedido de protecção judicial contra credores, se não chegar com eles a acordo para renegociação da dívida – por outras palavras, propõe uma falência controlada. A cotação do grupo baixa dramaticamente em duas agências de rating para apenas três níveis acima do incumprimento. Por fim, o pior de tudo, os juros da dívida portuguesa voltaram a subir acima de 4%.

Reguladores e políticos do arco governativo bem têm tentado lançar um manto corta-fogo: as coisas estão mal no grupo, mas o banco está seguro. Mas como, se à frente do banco continuam os detentores de uma fracção do capital que se vai reduzindo com recentes compromissos, os mesmos que dirigem a parte apodrecida do conglomerado? Os mercados clamam por sangue, o FMI recomenda supervisão intrusiva, a extrema-esquerda, cheia de razão por uma vez, receia novo caso BPN e nova sangria aos esmifrados contribuintes.

Escrevo em pleno fim-de-semana. Espera-se que tudo acalme. Mas talvez fosse agora a altura da "intrusão". O supervisor, manifestamente atento e corajoso quando a coragem foi mais necessária, tem de forçar a substituição da governação do banco; e recusar órgãos consultivos que mais não visam do que manter o controlo sobre esquálidos novos dirigentes. E para que se não diga tratar-se de esbulho, que lhes fixem uma pensão, mesmo copiosa. A ministra das Finanças se encarregará de lhes aplicar uma punção semelhante à dos milionários pensionistas do Estado. Justiça distributiva.

Professor catedrático reformado

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