Sopram novos ventos na Europa

A via austeritária começa a ser fortemente questionada nos mais diversos areópagos políticos e económicos.

1. Da Alemanha chegam-nos notícias, declarações e reflexões de tal modo inesperadas e pertinentes que devem concitar a nossa atenção.

Comecemos pelos pequenos sinais prenunciadores de uma alteração do ambiente político até agora prevalecente: Carsten Schneider, o porta-voz oficial do SPD, veio a público defender a necessidade do aumento do investimento público admitindo mesmo a necessidade de apresentação de um orçamento rectificativo em 2015; por seu lado, Ralf Stegner, vice-presidente do mesmo partido, não hesitou em afirmar que “o equilíbrio orçamental não deve constituir um fim em si mesmo”. O que suscitou a formulação de tais considerações foi o anúncio anteontem feito pelo Ministro da Economia germânico, o também social-democrata Sigmar Gabriel, de que as previsões de crescimento da economia para 2014 e 2015 tinham de ser revistas em baixa, passando respectivamente de 1,8% para 1,2% e de 2% para 1,3%. Afinal de contas nem tudo está bem no mais próspero país europeu.

O mal pode até ser muito mais profundo do que se imagina. Essa é, pelo menos, a tese de Marcel Fratzscher, que acaba de publicar um livro intitulado A Ilusão Alemã. A tese fundamental aí expendida é a seguinte: a Alemanha tem uma face brilhante, que se compraz em exibir, e uma face negra a que não tem sido prestada a devida atenção. A primeira é conhecida: o seu produto interno bruto cresceu 8% desde 2009, criaram-se novos empregos, as exportações aumentaram substancialmente, as contas públicas caracterizam-se por excedentes orçamentais e a dívida pública reduziu-se. O outro lado é mais inquietante: o PIB tem vindo desde 2000 a crescer a um ritmo inferior à média da zona euro, os salários dos trabalhadores têm aumentado abaixo da inflação, dois em cada três assalariados auferem actualmente um salário real inferior ao do ano 2000, uma criança em cada cinco vive abaixo do limiar da pobreza, as desigualdades cresceram (as de natureza patrimonial são mesmo as mais elevadas da Europa) e a igualdade de oportunidades regrediu. A explicação apresentada para justificar esta situação reside na diminuição da taxa de investimento, que será actualmente uma das mais baixas entre os países industrializados. Tal facto conduz a um aumento muito frágil da produtividade e concorre, entre outras coisas, para a diminuição do valor do património público.

Marcel Fratzscher desenvolve uma interessante reflexão sobre este assunto e conclui pela existência de três grandes ilusões que prejudicam a lucidez analítica na sociedade alemã. A primeira consiste na ideia de que o futuro económico está salvaguardado, que não há necessidade nenhuma de modificar as principais linhas de política económica que têm vindo a ser prosseguidas. A segunda ilusão resulta da convicção errada de que o país não precisa da Europa para nada e pode perspectivar o seu futuro económico fora do continente. A terceira passa pela desvalorização do projecto europeu por parte de largos sectores da sociedade que se limitam a ver na União Europeia um mero sorvedouro do dinheiro dos contribuintes alemães.

O autor finaliza a sua obra preconizando uma reorientação da política económica germânica de modo a garantir a modernização das suas infra-estruturas públicas e a reforçar a sua integração no projecto europeu. Haverá, com certeza, quem legitimamente discorde do carácter algo pessimista desta análise, contudo ela está a suscitar um interessante debate público naquela que é, sem dúvida, uma das mais efervescentes democracias ocidentais.

2. Em França a questão do momento tem que ver com o valor do défice orçamental previsto para o ano 2015, que sendo da ordem estimada dos 4,4% do PIB, viola o compromisso assumido perante a Comissão Europeia de assegurar a sua redução para um valor nunca superior aos famigerados 3%. A questão não é de resolução simples e obriga-nos a uma reflexão que excede largamente as fronteiras gaulesas. François Hollande expôs-se a violentos ataques oriundos da extrema-esquerda e da ala esquerda do seu próprio partido, os designados “frondeurs”, quando há uns meses propalou a ideia de que o relançamento económico nacional deveria passar prioritariamente pela valorização das políticas de estímulo à oferta e não pelo incentivo ao crescimento da procura. Foi então apodado de neoliberal por todos quantos se reclamavam ou de um posicionamento marxista ou de uma orientação mais moderadamente keynesiana. Reconheça-se que Hollande não foi feliz na formulação das suas ideias, mas mais importante do que essa declaração foi o esforço entretanto dirigido por Manuel Valls no sentido de reduzir a despesa pública e diminuir os encargos fiscais das empresas. Tal orientação mereceu mesmo o aplauso dos sectores ligados ao associativismo empresarial francês. O objectivo subjacente a essa orientação é claro: a prioridade absoluta consiste na criação de condições conducentes ao aumento da competitividade da economia francesa. Consciente da importância das reformas que está a levar a cabo, e que vão desde uma profunda alteração do modelo administrativo até uma modificação do estatuto de actividades profissionais altamente protegidas da concorrência, o executivo socialista confrontou Bruxelas com a necessidade de manter um valor de défice orçamental acima do acordado para evitar a recessão e as respectivas consequências sociais. Do ponto de vista da racionalidade puramente económica ninguém parece pôr em causa o acerto de tal decisão. Só uma interpretação ultra-ortodoxa dos compromissos europeus poderá conduzir a um confronto entre a Comissão Europeia e o Estado francês. Isso não vai, com certeza, acontecer.

Este acontecimento remete-nos para uma questão mais geral que se coloca com particular acuidade nos países que têm sido sujeitos a uma política brutal de austeridade. O que a França agora recusa é precisamente esse caminho e recusa-o com tanta mais legitimidade quanto se empenha em fazer reformas difíceis mas necessárias face ao novo enquadramento económico internacional. Está aqui um bom guião para uma acção futura de um governo sério, rigoroso, empenhado em garantir o crescimento da economia e a modernização do país, imbuído de uma verdadeira vontade reformista. Afinal de contas foi esse o espírito subjacente ao discurso proferido pelo novo Presidente da Comissão Europeia perante o Parlamento Europeu, em Julho.

3. Nas suas perspectivas de Outono acabadas de divulgar, o FMI − liderado pela insuspeita Christine Lagarde, antiga Ministra das Finanças de Sarkozy − preconiza uma redefinição das prioridades da política económica da zona euro com o intuito de debelar o risco de deflação e promover o aumento do potencial de crescimento. Nessa perspectiva, o documento em causa aponta para a possibilidade de um aumento do investimento público na Alemanha que poderia concorrer para a ampliação do nível de procura agregada na zona euro com consequências benéficas para todos os parceiros comerciais daquele país. Como se pode constatar, a via austeritária começa a ser fortemente questionada nos mais diversos areópagos políticos e económicos.

4. Por tudo isto, afigura-se cada vez mais evidente a vantagem em iniciar com a maior celeridade possível um novo ciclo político em Portugal. Estou plenamente convencido de que começa a gerar-se um amplo consenso em torno desta ideia. Mais do que tudo, o País precisa de voltar a sentir confiança no seu futuro.

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