“Faz falta uma revisão generalizada dos benefícios fiscais em Portugal”

Rogério Fernandes Ferreira, presidente da Associação Fiscal Portuguesa, defende que se a entrega separada de declarações de IRS por parte dos casais tem vantagens e simplifica o imposto, também cria algumas “dificuldades”.

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“O IRS mais ‘amigo das famílias’ é aquele que seja mais simples e que seja mais estável”, diz o fiscalista Fernandes Ferreira Rui Gaudêncio

As reformas fiscais em Portugal vão surgindo “de 30 em 30 anos”. Esta é a “década da reforma” e, diz o fiscalista Rogério Fernandes Ferreira, são precisos compromissos para dar estabilidade ao sistema fiscal. Quando fala em “consensos”, aponta os dois Governos minoritários de António Guterres como um exemplo a seguir. Fez parte do segundo, como secretário de Estado dos Assuntos Fiscais entre 2001 e 2002. De então para cá, diz, a política fiscal tem ganho peso no interior da política orçamental e será difícil diminuir a receita fiscal. Prioritário na reforma do IRS, entende, deve ser uma “simplificação” do imposto.

A arrecadação de receita com impostos foi determinante para o início da correcção orçamental. Quando o agravamento da carga fiscal atinge o nível de 2013 – que se mantém este ano –, é sinal de que o controlo das finanças está assegurado ou, pelo contrário, de que a situação ainda está muito vulnerável?
Os nossos compromissos internacionais, ao nível orçamental, têm sido conseguidos, quer por via da receita, quer por via da despesa, sendo certo que a receita tem dado um contributo decisivo para que os compromissos sejam atingidos. Estou, aliás, convencido de que a política fiscal no seio da política orçamental vai continuar a ser decisiva nos próximos anos.

Acredita que o nível da carga fiscal se vai manter tão alto de forma prolongada, mesmo que haja descidas marginais?
O professor [José Joaquim] Teixeira Ribeiro [presidente da comissão de reforma tributária de 1958-65 e vice-primeiro-ministro do Governo provisório de Vasco Gonçalves] costumava dizer que as finanças públicas e as finanças privadas se distinguem pelo seguinte: enquanto nas finanças privadas são as receitas que determinam as despesas, nas finanças públicas são as despesas que determinam as receitas. É um ponto de partida absolutamente diferente. Enquanto não se fizerem as reformas estruturais que se anunciam há anos ao nível da despesa pública, muito dificilmente será possível haver reduções ao nível da receita. Podem-se fazer algumas reformas interessantes, “copiando” princípios adoptados aquando da reforma dos anos 1980. Faz falta, provavelmente, uma reavaliação mais generalizada – e não tão pontual como aquela que tem sido feita nomeadamente ao nível do IRS – dos benefícios fiscais existentes, no sentido de verificar se eles se justificam do ponto de vista económico e social, desde que isto seja compatível, não apenas com a manutenção do mesmo nível de receita, mas também com uma maior justiça na tributação.

Defende a reavaliação dos benefícios fiscais no IRS ou nos vários impostos?
O que tem sucedido no IRS são cortes sucessivos nas deduções e restrições sucessivas a deduções. É preciso ter uma visão sistémica do imposto, integrado num sistema fiscal. Temos assistido a cortes um pouco isolados no sentido de atingir um determinado objectivo de receita. Sem prejuízo de se atingir esse objectivo – obviamente, os impostos são receitas fiscais e visam a receita, para que as despesas públicas possam ser efectuadas –, o que falta é essa análise global. Essa reavaliação deve ser feita não apenas ao nível do IRS, mas também ao nível dos outros impostos. Aliás, há trabalhos no Ministério das Finanças já sobre estas matérias, que podem ser absolutamente aproveitados. Essa análise faz muito mais falta do que uma mera redução de taxas.

É nesse sentido que o Governo fala numa simplificação do imposto, não se comprometendo com uma descida?
O próprio presidente da comissão de reforma [Rui Duarte Morais] já chamou a atenção de que está em causa muito mais uma necessidade de estabilidade e de simplificação fiscal do que propriamente a redução das taxas ou a redução da receita fiscal, que no actual contexto é muito difícil de realizar. O IRS tornou-se num dos impostos mais importantes no actual sistema fiscal, com níveis de receita muito próximos já do IVA. Em Portugal, ao contrário de outros países europeus, o nível a receita proveniente do IVA e dos outros impostos indirectos era [em anos anteriores] muitíssimo superior ao dos impostos directos, onde se situa o IRS. Ora, a crise tem trazido, por más razões, o IRS à ribalta.

Os portugueses pagaram, no ano passado, a maior factura de IRS de que há memória. Os cidadãos sentem a repercussão social dos impostos que pagam?
Os portugueses conformam-se, respeitam as regras. Tem sido, infelizmente, difícil reduzir a despesa – aliás, é [difícil] neste país, como é nos outros. É muito mais fácil, por decreto, aumentar a receita fiscal, pelo menos, até determinado momento – até ao momento em que a receita diminui; assistimos a isso bem recentemente ao nível do imposto sobre o tabaco, cuja taxa aumentou, mas a receita diminuiu; até esse momento, é mais fácil aumentar a receita do que diminuir a despesa; é esta inversão de procedimentos que é preciso definitivamente fazer.

Estamos no momento da necessidade dessa inversão?
Provavelmente, estaremos no limite da carga tributária. É preciso agora ir às franjas. As franjas são a reavaliação dos benefícios fiscais e o combate à fraude e evasão fiscais. E, neste aspecto, têm-se feito coisas importantes e positivas, como é o caso da E-factura, que tem tido repercussões ao nível da receita do IVA.

A reforma fiscal iniciou-se com o IRC, ao mesmo tempo em que se assistia ao aumento da carga fiscal no IRS. O facto de este primeiro passo ser uma descida progressiva do imposto dirigido às empresas é compreendido pelos cidadãos?
Há uns anos, dizia-se que as “reformas fiscais”, pelo menos em Portugal, surgiam de 30 em 30 anos: tivemos uma reforma no final dos anos 1920, a reforma Teixeira Ribeiro – presidente da comissão de reforma nos anos 60 –, a reforma de Paulo de Pitta e Cunha no final dos anos 80 e estamos propriamente a entrar, outra vez, na década da reforma. Esta é a década da reforma. Foi entendido que se deveria começar pelo IRC, do meu ponto de vista bem, porque o problema de qualquer reforma é de enquadramento e de competitividade internacional e, portanto, faz sentido que se olhe ao problema da tributação do lucro das empresas. Aquando da comissão de reforma Pitta e Cunha [anos 1980], o IRS e o IRC foram vistos e criados em simultâneo. Basta ver que a taxa marginal máxima do IRS, então fixada em 40%, correspondia à taxa geral do IRC de 36,5%, acrescida da derrama da derrama municipal de 10% sobre a colecta, equivalendo a um máximo de 3,6 que acrescia ao IRC num total de cerca, precisamente, os mesmos 40%. Hoje, assistimos a um abaixamento sucessivo da taxa geral do IRC, que não era prioritário, agora de 25% para 23% em 2014 e, a prazo, até 2016, para os 19%, sendo que com a manutenção da taxa marginal máxima do IRS conjugada com a sobretaxa extraordinária e a taxa adicional de solidariedade, atingimos níveis de taxa marginal de tributação de 56,5%; a taxa do IRC está neste momento — e vai estar — a níveis sensivelmente iguais ou inferiores a metade da taxa marginal do IRS. Este problema da articulação dos dois impostos também se torna aqui muito evidente.

A reforma do IRS terá ainda de se articular com a reforma fiscal verde, que corre praticamente ao mesmo tempo. Pode haver alguma compensação de impostos sobre o rendimento através de impostos ambientais?
Estou mais a pensar nas questões de neutralidade, ou seja, que as escolhas não sejam motivadas exclusivamente por razões fiscais. Provavelmente, vai ser muito difícil diminuir a receita global – o que não é necessariamente incompatível com alguma diminuição das taxas. Não sei é se é aconselhável neste momento.

Há uma expectativa dos cidadãos, acredita-se, de que possa haver uma descida dos impostos.
O problema é: que impostos? É o problema de receita fiscal. Não me admiro que sejam repescadas outras ideias que já existiram noutros tempos, quanto a alguns impostos indirectos sobre o consumo ou impostos ambientais que, de facto, têm sido experimentados em alguns países.

O Governo tem referido que a comissão de reforma vai trabalhar para que haja um imposto mais “amigo das famílias”. O que significa para si esta expressão? É compatível com uma eventual não descida do IRS?
O IRS é, por natureza, um imposto cuja finalidade é a obtenção de receita. O IRS mais “amigo das famílias” é aquele que seja mais simples e que seja mais estável. E o IRS não é nada simples tal como está: basta ver a panóplia de situações fiscais familiares que existem, entre as pessoas casadas e as pessoas em uniões de facto, sejam de sexos diferentes, sejam do mesmo sexo, ou as situações fiscais “familiares” que dizem respeito à economia comum. Para que o sistema se torne mais simples — e para que se possa diminuir uma série de obrigações acessórias, nomeadamente declarativas, e para que os procedimentos de fiscalização e de controlo sejam efectivos e para que as pessoas sejam dispensadas de uma série de obrigações laterais que o Estado impõe para obter esta receita —, era importantíssimo pensar efectivamente na questão da tributação a tributação separada vai permitir a dispensa de uma série de obrigações declarativas a, provavelmente mesmo na tributação separada individual e numa declaração autónoma por contribuinte. Vão-me dizer que isto não é compatível com a Constituição, que exige a tributação unitária da família. Já há quem interprete a Constituição, no meu entender bem, no sentido de que a norma constitucional não é incompatível com uma tributação separada. A Constituição fala precisamente num imposto pessoal; ora, um imposto pessoal também tem este sentido: é um imposto individual, de cada pessoa. O que a Constituição exige é outra coisa: que se tenham em conta os rendimentos e os encargos dos agregados familiares.

É possível a comissão de reforma fazê-lo nestes quatro meses, garantir esta articulação ou, pelo menos, abrir caminho a ela?
Apesar do tempo ser curtíssimo, do meu ponto de vista incompatível até para uma reforma estrutural do sistema, estou certo que vamos ter recomendações muito pertinentes e no sentido adequado.

Que implicações haverá para quem tem rendimentos comuns?
Primeiro, só a tributação separada vai permitir a dispensa de uma série de obrigações declarativas e de outras obrigações acessórias. Só essa solução resolve a panóplia de situações familiares com tratamentos fiscais discrepantes, além de que vai, provavelmente, possibilitar de uma forma muito mais adequada aproximar a retenção na fonte do valor do imposto devido a final. Tem várias vantagens, mas também tem dificuldades. A questão dos rendimentos comuns vai ser a grande questão. Se, porventura, a tributação separada for por opção, cria-se aqui um problema adicional: temos não só a situação actual da tributação unitária, como temos o problema da opção da tributação separada. Tudo isto tem de ser devidamente ponderado, reflectido e quantificado, porque também tem consequências ao nível de receita.

Na reforma do IRC, a estabilidade fiscal ficou assegurada?
Vi com muito bons olhos o consenso conseguido ao nível dos partidos do arco da governação, até tenho pena que não se pudesse alargar mais o consenso ao nível partidário. Estes compromissos são absolutamente cruciais nos próximos anos para Portugal. E os portugueses estão atentos à necessidade desses compromissos. Espero que possam existir de futuro, quer sobre a reforma do IRS, quer sobre outras questões essenciais dos próximos anos.

Foi prolongado o prazo para as empresas reportarem os prejuízos fiscais. A decisão não vem beneficiar determinadas áreas, grandes empresas que registem prejuízos, que ficam isentas de IRC e que mais tarde podem deduzir os prejuízos nos lucros que venham a ter?
A tal reavaliação geral da despesa fiscal deve avaliar todas essas questões. O problema é que não podemos andar sempre a mudar as leis: não podemos ter um prazo de seis anos, depois passar a um prazo de quatro anos, depois a cinco anos, depois passar a um prazo com limites, depois ninguém saber como se aplica a lei no tempo e depois passar para um prazo de 12 anos. Independentemente da bondade do prazo ser 12 anos, cinco ou quatro, o que eu critico são as alterações sucessivas nesta matéria. E daí a necessidade de consensos políticos, para que os partidos se comprometam durante um prazo tão alargado quanto possível a manter os regimes com alguma estabilidade.

 

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