Saímos de canadianas e com os finlandeses à perna

Passos Coelho diz que não teremos de vender a nossa alma ao diabo. É verdade. Só temos de a hipotecar.

A forma como Portugal vai sair do programa de resgate está dependente da boa vontade de uma pequena agência de rating canadiana e da má vontade dos nossos amigos finlandeses que exigem ao país garantias reais para nos continuar a ajudar no pós-troika. É caso para dizer que vamos sair do resgate a coxear, depois da grande sova que levámos nos últimos três anos, de canadianas, e com os finlandeses à perna. E, apesar de toda a austeridade, e de os juros estarem em níveis historicamente baixos, não vamos sair do resgate com uma perna às costas.

E só não saímos a mendigar, com uma mão à frente e outra atrás, porque o Governo resolveu, e bem, aproveitar a descida acentuada dos juros para se financiar, e pôs de lado algum dinheiro da troika, para constituir um pé-de-meia de 16 mil milhões de euros. Há quem critique que esta almofada custa muito dinheiro ao país (435 milhões em juros só no ano passado), já que é dinheiro que está “parado” na banca comercial e outra parte está depositada nos cofres do Banco de Portugal. E, além disso, o Estado tem ainda 6,4 mil milhões “parados” no nº.148 da Rua do Comércio, que é o dinheiro que a troika nos emprestou para ajudar os bancos em dificuldades e que ainda não foi usado.

É o custo que o país tem de pagar para poder sair do programa de resgate sem se expor em demasia aos humores do mercado. Foi precisamente isso que fez a Irlanda, que criou uma almofada de liquidez de 20 mil milhões para poder sair do resgate sem ajudas, a chamada "saída limpa” ou "à irlandesa". O nosso grande problema é que, ao contrário da Irlanda, vamos sair do programa de assistência financeira com as três maiores agências de rating (S&P, Moody's, e Fitch) a classificarem a nossa dívida  como "lixo”. Só há uma pequena agência em Toronto, a DBRS, que nos dá uma classificação simpática de investment grade. Isto significa que, se Portugal optar por uma "saída limpa” do resgate, arrisca-se a ficar refém dessa pequena agência.

O problema é fácil de explicar. Enquanto o país esteve intervencionado, o BCE suspendeu a aplicação de uma cláusula que obriga os bancos que peçam empréstimos ao banco central a ter de apresentar como garantias dívida pública com um nível de rating acima de lixo (das quatro agências credenciadas pelo BCE, pelo menos uma tem de classificar o país como investment grade). Porém, se o Governo optar pela "saída limpa", a regra volta a aplicar-se e, neste caso, Portugal fica refém dessa agência canadiana, a única que confere a Portugal um rating acima de lixo. No caso de perder essa classificação, os bancos portugueses terão maiores dificuldades em financiar-se junto do BCE e, muito provavelmente, terão de encontrar activos de melhor qualidade para dar de garantia pelos 45 mil milhões de euros que ainda devem ao banco central. E terão ainda de encontrar outros activos elegíveis para se financiarem no mercado dos REPO (onde se vende activos em troca de liquidez, com o compromisso de recompra posterior).

Esta situação já deveria ter sido acautelada atempadamente pelo governador do Banco de Portugal, que faz parte do board do BCE. É só por uma questão de cortesia institucional que os banqueiros não têm criticado abertamente Carlos Costa. E o problema que se pode criar não é só dos banqueiros; é do dinheiro que pode não chegar à economia e às empresas. A culpa não é com certeza só de Carlos Costa. Talvez até seja o menos culpado. A culpa é do próprio BCE, que continua refém das agências de rating. Faz algum sentido que ainda hoje sejam elas a determinar a qualidade dos activos que devem ou não ser aceites pelo banco central como garantia? As agências de rating, é bom não esquecer, estiveram na origem de erros de avaliação calamitosos que provocaram a crise financeira que ainda hoje estamos a viver.

Como Portugal e o BCE não acautelaram este cenário, optar por uma "saída limpa" poderá ser pouco sensato. O problema é que, se Governo optar por um programa cautelar, ver-se-á igualmente confrontado com um outro problema, também relacionado com garantias. Olli Rehn já veio dizer que a Finlândia também está a exigir a Portugal garantias (colaterais) para disponibilizar uma ajuda adicional, se o cenário for o país optar por um cautelar. Aliás, na altura do segundo resgate grego, os finlandeses e os holandeses chegaram a colocar em cima da mesa a possibilidade de a Grécia ceder algumas das suas ilhas paradisíacas e Portugal a sua reserva do ouro para servirem de garantia para os empréstimos da troika. Só desistiram quando a Grécia impôs um haircut aos credores privados. É a solidariedade europeia no seu melhor.

Pedro Passos Coelho vai ter de decidir até 5 de Maio a forma como Portugal sairá do programa de resgate e vai ser criticado, qualquer que seja a decisão que vier a tomar. Vai ser apelidado de "temerário" e "eleitoralista", se optar por uma "saída limpa"; e será acusado de prolongar a austeridade e de hipotecar a soberania do país por mais 12 meses, se optar pelo programa cautelar. Se escolher uma "saída limpa", arrisca-se a colocar a capacidade de financiamento da economia nas mãos de uma pequena agência de rating; se optar pelo cautelar, arrisca-se a ter de hipotecar algumas barras de ouro para satisfazer a veleidade dos finlandeses. É caso para dizer: venha o diabo e escolha. Na semana passada, criticando aqueles que prometem caminhos fáceis, Passos Coelho considerou: “É preferível não vender a nossa alma ao diabo da demagogia.” Podemos não ter de a vender, mas já se percebeu que, pelo menos, vamos ter de a hipotecar ou dar como garantia à demagogia do BCE, das agências de rating e dos finlandeses.
 

   

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