Reestruturação da dívida: uma questão mal colocada

A argumentação a favor e contra a reestruturação da dívida em Portugal tem sido muito limitada.

Desde o início do programa de assistência financeira, ou vinda da troika, conforme as duas principais preferências semânticas, a discussão sobre a reestruturação da dívida pública é tema recorrente. Dado que essa reestruturação consiste no alargamento dos prazos de pagamento de cupões e reembolso, na redução dos seus valores, ou ainda numa combinação dos dois métodos, tem sido muito limitada a argumentação usada, tanto a favor como contra. A defesa da reestruturação enfatiza o alívio que esta trará às necessidades financeiras do Estado, permitindo-lhe afetar recursos a despesa que contribua para a recuperação das taxas de crescimento do PIB. O argumento usado contra a reestruturação da dívida é, por sua vez, a subida das taxas de juro no mercado secundário, que se seguiria ao simples anúncio da reestruturação, e que anularia todos os seus potenciais benefícios.

Estes dois tipos de argumentos a favor e contra a reestruturação da dívida referem-se a um contexto irrealista em que esta poderia fazer-se rapidamente e de forma unilateral. A primeira destas hipóteses serve de base aos argumentos otimistas que realçam os benefícios da reestruturação, ignorando que esta requeria uma fase de preparação, à qual se seguiria a difícil fase de negociação com os credores e, só após esta, a de execução, num processo complexo que pode levar anos. Entre as causas que tornariam esse processo mais difícil e incerto está o facto de os governos dos países dominantes da área do euro e a Comissão Europeia terem vindo a mostrar uma grande hostilidade à abertura de processos de reestruturação, por levarem a perdas por parte de grandes instituições financeiras desses países, e por temerem todos os sinais de impossibilidade de cumprimento das dívidas dentro da área do euro. Assim, um processo de reestruturação da dívida só poderá ser desencadeado se ocorrer uma situação de incumprimento, e não antes. 

Por outro lado, a tão receada subida das taxas de juro iria antecipar o anúncio da reestruturação, e não surgir depois. Os acontecimentos mais gravosos que resultariam deste anúncio seriam a redução significativa da capacidade de obter novo financiamento por parte do Estado, e o aumento da fuga de capitais para o exterior, que seria praticamente impossível de impedir. Podemos, talvez com alguma ingenuidade, continuar à espera que um dia as instâncias que governam a área do euro criem um mecanismo automático de alongamento da maturidade das dívidas, quando o seu peso no PIB ultrapassar um certo limiar. Esta é uma solução defendida em certos grupos de reflexão, mas que o ambiente dominante na União Europeia parece pouco propício a acolher. Até lá, tem a gestão da dívida um papel primordial, através da colocação das novas emissões, e da eventual recompra das emissões antigas, antes do reembolso, assentes na estrutura de prazo das taxas de juro e nas expectativas que ela gera.

Entretanto, no contexto dramático que, de forma tão prolongada a economia portuguesa atravessa, uma solução que diminuiria a dependência de financiamento externo, e reduziria os riscos de entrada num doloroso processo de reestruturação, seria, por exemplo, a criação de um Fundo de Compra da Dívida, cujas unidades de participação captariam poupança nacional e nas comunidades emigrantes, destinada a ser aplicada predominantemente na compra de dívida pública, tanto no mercado secundário, como no momento da emissão, e também na compra de títulos de dívida emitidos pela banca por contrapartida do financiamento do setor exportador. É que as crises de dívida são determinadas menos pela sua dimensão, e mais pelo facto de ela ser detida em montantes elevados por investidores estrangeiros, facto que tem sido excessivamente ignorado em Portugal.

Professor da Universidade de Coimbra, Faculdade de Economia

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