Quase um quarto dos portugueses continua sem conseguir pagar despesas básicas

Três anos de troika trouxeram de volta a marmita, deram impulso às promoções e houve quem regressasse aos campos para cultivar a própria comida. Com um apertado orçamento familiar, os consumidores jogaram à defesa.

Foto

O bairro é pobre. Daqueles de prédios altos brancos, a precisar de pintura. Com carros abandonados, um ar de desleixo, mas com escola básica e clube recreativo. Ouvem-se homens a conversar e, na paragem, uma fila de moradores aguarda pelo autocarro. Ao fundo da rua, há uma imensidão de terreno onde Manuel Gomes está a regar favas de mangueira em punho. Na Quinta da Princesa, no Seixal, nascem ervilhas, milho, feijão ou cana-de-açúcar, cultivados por cerca de 120 famílias, pelos cálculos da câmara municipal.

Nos últimos anos, a procura por áreas para cultivo agrícola aumentou, não só aqui, como em todo o concelho. Susana Lança, responsável pelo projecto Rede de Hortas Urbanas do Município do Seixal, explica este fenómeno pelas dificuldades económicas, motivadas pela crise. “As famílias estão no limite em termos de esforço financeiro e a possibilidade de terem acesso a um espaço para cultivarem os seus próprios alimentos é uma solução cada vez mais afirmada pelos munícipes”, adianta. Manuel Gomes, 51 anos, fez da sua horta um lugar de terapia. Tem sido a sua pequena mercearia de bairro nos últimos anos, sobretudo, desde que ficou sem emprego na construção civil. “Ajuda muito a pôr comida na mesa”, vai contando, enquanto rega. Na Quinta da Princesa, a procura é tal que o bairro se organizou com a ajuda da câmara para criar a uma cooperativa agrícola e conseguir organizar melhor os nove hectares já cultivados.

Foto

Mariano Dias e Domingos Borges, membros da comissão instaladora, garantem que as pessoas estão a cultivar mais. Por mês, Domingos consegue levar para casa, pelo menos, um saco com legumes. “Ontem precisávamos de cebola para o jantar e eu vim aqui buscar”, exemplifica este trabalhador da construção civil, no desemprego.

Aqui a crise sempre foi uma presença constante. Mas nos últimos três anos, marcados pela presença da troika do Fundo Monetário Internacional, Comissão Europeia e Banco Central Europeu, a sombra ficou maior. Em Portugal, o desemprego de longa duração já afecta meio milhão de pessoas. A taxa de emprego está em níveis de 1980 (51,1%) e, em três anos de assistência financeira, a economia destruiu 332 mil postos de trabalho. O contexto económico e as medidas de austeridade fizeram aumentar a percentagem de pessoas que admite não ter capacidade financeira para cobrir as despesas básicas. De acordo com a empresa de estudos de mercado Kantar Worldpanel, em 2010, 19,2% dos consumidores diziam sofrer com o impacto da crise. Em 2011, eram já 22% os que não tinham dinheiro para as necessidades básicas. Em 2012, chegaram aos 27%. E aos 24,7% no ano seguinte.

Classe média ajusta gastos
Nem todos reagiram da mesma forma à austeridade. Sofreram mais ou menos consoante a sua situação social e profissional. No início, a classe média e, sobretudo, quem conseguiu manter o emprego, ajustou.  "Fizeram cortes mais fáceis e  e óbvios: reduziram bens supérfluos, no excesso na roupa, nos almoços fora, nas viagens”, ilustra Clara Cardoso, sócia da Return on Ideias, consultora que, juntamente com a Ipsos Apeme e a Augusto Mateus e Associados, analisa de forma permanente o comportamento dos consumidores. Os portugueses jogaram à defesa, mostraram mais ponderação, mas, em 2010, ainda “acreditavam que a crise passaria sem que nada de radical lhes fosse exigido. Enganaram-se”, continua a especialista, que exclui desta análise os que já sentiam na pele os impactos devido, sobretudo, ao desemprego.

A prudência reflectiu-se no maior planeamento das compras ou na redução de visitas aos centros comerciais. Mas foi a partir do momento em que a troika e o Governo assinaram o memorando de entendimento, em Maio de 2011, que se sentiu “com grande profundidade o impacto da crise”, diz, por seu lado, José António Rousseau, professor e consultor. “Fundamentalmente pela questão psicológica, porque a redução dos rendimentos não foi de imediato, foi acontecendo”, sustenta.

Ainda com Sócrates na liderança, o ano começou com um aumento da taxa normal de IVA de 21 para 23% que teve um efeito directo na factura do supermercado: mais 38 euros, pelas contas feitas, na altura, pela Kantar. No primeiro semestre, 47% dos portugueses não compraram uma única peça de roupa e desenharam-se três estratégias para contornar a crise: aproveitar as promoções, comprar mais marcas da distribuição e substituir um produto por outro semelhante (carne de vaca por frango, por exemplo). Em 2012, a alteração na lista de bens com IVA – um compromisso do Governo de Passos Coelho com a troika - provocou uma das maiores mudanças: a restauração passou a ter de aplicar um imposto de 23%, em vez de 13%. E, por isso, levar comida para o trabalho passou a ser uma estratégia seguida por 40% dos portugueses (29% em 2009).

O consumo de produtos frescos começa a aumentar. No carrinho há mais azeite, açúcar, carne ou peixe, mas nas lojas de electrodomésticos, móveis ou roupa, as vendas caíram na ordem dos 4,2%, como reportava a Associação Portuguesa das Empresas de Distribuição (APED) no segundo trimestre de 2012. O frigorífico dos portugueses regressava aos anos 1980, com comida mais tradicional, menos sumos e refrigerantes ou lácteos. As vendas de Nestum aumentaram 7% em seis meses, num sinal de poupança forçada para muitos.

Viciados em descontos
Nos supermercados, as promoções estão ao rubro. A utilização de cupões de desconto dispara 40%. E o Pingo Doce pára o país no 1º de Maio, com 50% de desconto em todos os produtos (em compras superiores a 100 euros e excluindo electrodomésticos). Foi, como afirmou Ana Isabel Trigo de Morais, directora geral da APED, “o ano de todas as promoções” e mudou a forma como os maiores operadores do retalho alimentar lutam pelos clientes. Os holofotes viraram-se para o preço e, diz, Clara Cardoso, instalou-se “um novo modo de estar”: “uma sociedade de descontos, atenta, cheia de informação”. A troika deixa o país “viciado em descontos”, garante, por seu lado, José António Rousseau.

Andreia Moreira, professora desempregada de Vila Nova de Gaia, passou a encarar uma ida às compras como uma função estratégica para poupar. Com tempo livre, em 2012 deslocava-se três vezes por semana ao supermercado para pesquisar preços. Juntava vales de desconto a promoções para conseguir os melhores valores. E, à medida que iam sendo anunciadas medidas de austeridade, sentia um impulso para travar os gastos. “Há como que uma retracção subconsciente. As compras passam a ser bem planeadas. Nada de desperdícios”, confessa.

Hoje, Andreia já não tem tanto tempo para delinear estratégias. A família cresceu (foi novamente mãe) mas há três coisas que não vai voltar a fazer: “Comprar por impulso, fazer compras sem lista e sem analisar as promoções”.

A vaga de descontos, em 2013, fez com que a quota de mercado das marcas da distribuição caísse pela primeira vez, numa inversão da tendência de crescimento. As rivais marcas detidas pela indústria alimentar começaram a ser vendidas com preços atractivos, por vezes, com diferenças mínimas, levando o consumidor a colocar no carrinho produtos que, até então, eram tradicionalmente mais caros.

Os primeiros meses do ano passado foram duros. Reintroduziu-se, por exemplo, a sobretaxa de 3,5% sobre os rendimentos acima do salário mínimo. Os cortes nos subsídios de férias dos funcionários públicos e reformados mantinham-se mas a medida seria chumbada, em Abril, pelo Tribunal Constitucional. Os portugueses estavam “em modo de sobrevivência”, diziam os estudos da Kantar.

No primeiro semestre, a venda de produtos de bens de grande consumo caiu 3,7% em volume, a primeira descida significativa dos últimos anos. A cesta de compras encolheu. Menos azeite, menos farinhas, menos pão, menos detergente para a máquina de loiça, menos fruta, menos peixe. “Entre 2012 e o primeiro trimestre de 2013 tivemos categorias de produtos que viram desaparecer cerca de um terço do seu mercado, como electrodomésticos ou produtos de entretenimento”, diz Ana Isabel Trigo de Morais.

No meio da tempestade, o comércio tradicional começa a merecer a preferência de quem procura lojas perto de casa: a quota de mercado cresce 0,3 pontos percentuais entre Janeiro e Junho de 2013, em comparação com 2012, atingindo os 15,4% (APED). O fenómeno não é, contudo, generalizado.

No segundo semestre, os indicadores económicos trazem algum alento. O desemprego - que começou a baixar a partir do segundo trimestre – continua a reduzir, partindo, contudo, de níveis históricos elevados. As exportações evoluem de forma positiva. E a reposição dos subsídios de férias na função pública, em Novembro, ajudou a antecipar compras de Natal. O consumo total das famílias cresceu 0,8% entre Outubro e Dezembro, mas ainda caiu entre os bens não alimentares, como roupa ou calçado (INE). As tímidas melhorias não apagam, contudo, um ano que fechou com um aumento de 4%, face a 2012, do número de pessoas com empréstimos em incumprimento (eram quase 662 mil no ano passado segundo o Banco de Portugal).

No limite do “espartanismo”
Em três anos de troika, os portugueses mudaram de forma radical a forma como gerem o orçamento familiar. Mas a professora da Universidade Católica, Rita Coelho do Vale, acredita que da turbulência saiu um consumidor melhor. “Mais racional, menos sensível ao aumento do ego e à compra em função da marca, com quase orgulho em ser racional. Quem não perdeu rendimentos tem, hoje, vergonha no acto do consumo desmesurado”, defende. Os portugueses, diz, “chegaram ao limite do espartanismo”. E isso mesmo parece indiciar a subida de 1,7% nas vendas do comércio no primeiro trimestre de 2014, face a 2013, divulgadas pelo INE. A APED também dá conta de um crescimento expressivo do consumo de produtos não alimentares (telecomunicações, electrodomésticos e artigos de papelaria, por exemplo).

Certo é que é cada vez mais difícil traçar um retrato generalista dos consumidores. “Temos uma sociedade mais segmentada, mais difícil de conhecer e de colocar em caixinhas”, resume Clara Cardoso. Ao lado dos que deixam de comer fora de casa e seguem com atenção os descontos, há os que só compram mesmo o que podem. Como António Lopes, 43 anos, que nos terrenos disponíveis ao pé de casa, na Quinta da Princesa, Seixal, prepara a terra para semear feijão. “Junto com arroz e é muito bom”.


Sugerir correcção
Comentar