Portugal vai deixar de ter "bancos do regime", por travão do BCE

A tentação do poder político para financiar políticas distributivas é grande, defende Joaquim Aguiar, mas as regras vão ser mais apertadas.

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Regras mais apertadas do BCE deverão evitar casos semelhantes aos do BES.

A crise no Grupo Espírito Santo não terá apenas consequências negativas para o país. Joaquim Aguiar, economista e investigador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Técnica de Lisboa, defende que Portugal “vai entrar num novo regime, quer económico, quer político, em que as ocultações serão, pelo menos, de tipo diferente”.

Em declarações ao PÚBLICO, o consultor e gestor de empresas elenca como grande responsável por essa mudança a União Europeia , através da criação da união bancária, de que resultou o aperto de regras de supervisão por parte do  (BCE).

“A ameaça dos stress test, que vão ser feitos já com supervisão do BCE, está na origem da precipitação desta crise, que se manifesta em várias frentes. Tudo o que era artificial vai ser comprimido e revelado porque o supervisor europeu vai actuar no mercado português já no corrente semestre”, defende.

Mas os efeitos no futuro serão positivos: “Toda a estrutura de poder, empresarial e política, vai ser interferida por essas novas regras”,  refere o consultor de empresas e administrador do grupo José de Mello, que destaca ainda que “os capitais que vão entrar para preencher os vazios agora abertos vêm do exterior, com regras exteriores, e isso também vai ser benéfico para o país”.

Recuperando uma analogia feita pelo presidente do BPI, Fernando Ulrich, o gestor defende qua a supervisão do BCE “é como quem tem um abcesso e retira o abcesso: dói na altura, mas a seguir é um alívio”.

E a tentação do poder político de ter bancos de regime é grande. “O regime político serviu-se do BES e de outros bancos para financiar políticas que se revelaram um fracasso, com consequências na dívida pública, mas também com consequências na dívida privada das famílias”. Foi o caso das parcerias público privadas, mas também o financiamento às famílias no crédito à habitação, utilizado para criar um crescimento artificial.

A tentação de ter bancos de regime decorre ainda “da vontade do poder político de  ter políticas económicas distributivas, que são da preferência do eleitorado e dos agentes económicos”.  Essas políticas consistem “em assumir posições a partir das quais recebem benefícios que não correspondem à produtividade e à competitividade, e existiram nos últimos 40 anos”, recorda.

“O que aconteceu não é nenhum mistério”, diz Joaquim Aguiar “e todos são  responsáveis, poder político, empresarial, supervisores e  justiça. Empresarias porque se fizeram aplicações de recursos limitadas em actividades que não justificavam essas aplicações”.

Também a justiça já deveria ter assumido, há uns anos, um protagonismo maior. “A justiça é um pouco como as radiografias. O que fracassou na nossa justiça e na regulação, designadamente a do Banco de Portugal, foi a capacidade para produzir estas radiografias, porque nada disso começou ontem”, afirma.  E acrescenta: “Rebentou porque vinha aí um homem com um aparelho de radiografia diferente. Que era o BCE. Sem isso continuaríamos mais algum tempo a circular com a dívida de um lado para o outro”.

Na génese do problema elenca ainda o excessivo endividamento contraído pelos grupos económicos que foram às privatizações, uma situação que o poder político deixou  “deliberadamente acontecer, para melhor os poder controlar”.

Joaquim Aguiar defende que os grupos nacionalizados, para irem às privatizações, tiveram de contrair dívida, mas “o importante, a partir daí, é se essa dívida foi entendida como capital ou se mereceu um tratamento especial” , com vista à sua redução.

Sem querer particularizar, o economista defende que “quando se considera a dívida capital há a tentação de contrair mais dívida, o que tratando-se de empresas no sector financeiro fica ainda mais facilitado”. Na prática, assegura, "no sector financeiro há a possibilidade de ir compondo os balanços até ao ponto de explosão”.

Apesar do elevado endividamento contraído, o economista defende  que “os grupos nacionalizados não estavam condenados a fracassar, desde que soubessem distinguir entre dívida e capital”.

A família accionista a fazer parte dos órgãos de gestão, em alternativa a uma aposta em quadros técnicos, agrava ainda mais o problema. “ A família com capital tem sempre a tendência de dizer 'eu é que mando'. Famílias com dívida a única coisa que pedem é que as tirem do meio da dívida. É uma dificuldade para os quadros técnicos, porque têm mais dificuldade em financiar as expansões, mas têm mais facilidade em gerar resultados para secar a dívida”, defende.

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