Piratas portugueses à conquista do mundo

A taxa de falhanço das startups é de 90%. Antes de enfrentar o mercado é preciso saber como desenvolver e apresentar uma ideia. É aí que entram os Startup Pirates. Nasceram em 2011 no Porto e espalharam-se já por 18 países, “do Paquistão ao Peru”

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"Neste momento estamos em 18 países e 31 cidades e dos nossos programas saíram já 90 startups com projectos vivos”, diz Inês Santos Silva, co-fundadora juntamente com Rafael Pires e Daniela Monteiro (da equipa actual faz também parte Ana Almeida; os outros dois co-fundadores, Ariana Brás e João Oliveira, já não estão com a Startup Pirates).

No meio de tantos países e cidades, é em Braga que os vamos encontrar. Num antigo quartel da GNR transformado desde há cerca de um ano em incubadora de projectos, Inês, Rafael, Daniela e Ana estão a ajudar a equipa da Young Minho Enterprise (YME) a organizar a terceira edição da Startup Pirates de Braga.

E o que é a YME? Sandra Mesquita, a tirar o mestrado em Economia Monetária, Bancária e Financeira, e Cristina Ferreira, no 2.º ano do curso de Economia, explicam-nos que é uma empresa júnior da Universidade do Minho formada por cerca de 20 estudantes de diferentes anos e que trabalham aqui voluntariamente. “É uma forma de ganharmos soft skills para nos prepararmos para o mercado de trabalho, organizando eventos, contactando com patrocinadores, convidando oradores.”

Inês conta que também ela fez parte de uma empresa júnior quando estava na faculdade. “É uma experiência muito exigente. Temos de lidar com empresas de grande dimensão, o que nos obriga a crescer.” Aqui, o que Sandra e Cristina fazem é organizar a semana de trabalho que junta os dez participantes nesta edição da Startup Pirates que vamos conhecer depois da pausa para almoço — a eles e às ideias que estão a trabalhar (a Revista 2 visitou-os no 4.º dia de trabalhos), na esperança de que se transformem em projectos viáveis. Podem também inscrever-se no programa “navegadores solitários, sem uma ideia mas com vontade de aprender”.

O programa consta de oito dias de horário intenso divididos em sessões de team building, workshops dados por empresários, trabalho de grupo para desenvolver uma ideia (é escolhida apenas uma ideia por equipa de trabalho), sessões com mentores que vão criticar e orientar esse trabalho, encontros com a comunidade local para eventuais contactos, apresentação pública dos projectos e palestras de empresários sobre a sua experiência pessoal no mundo dos negócios.

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O Business Model Canvas é uma folha de papel dividida em nove espaços, cada um com várias perguntas em cima das quais vão-se somando post-its com tentativas de respostas. Rita França

Começamos precisamente por assistir a uma dessas palestras, de meia hora, com conselhos para quem sonha com o sucesso. Pedro Fraga é empresário (fundador da empresa de tecnologias da informação F3M), mentor e business angel, o que significa que apoia projectos de startups em que acredita. E está aqui para “partilhar algumas lições” que aprendeu neste mundo dos negócios.

Por exemplo: criar uma empresa com um amigo e achar que não é preciso definir regras “é o caldo certo para as coisas correrem mal”. Quando se trata do mundo empresarial, “um amor e uma cabana não existe”, afirma. Durante a meia hora seguinte, perante uma audiência atenta, Pedro Fraga vai resumindo, de forma descontraída, aqueles que na sua opinião devem ser os princípios básicos do empresário: “Nunca pensem que são as pessoas que mais trabalham no mundo — há sempre quem trabalhe mais do que nós. Não olhem para a vossa empresa como o vosso bebé — vão morrer agarrados a ela. Contratem apenas pessoas melhores do que vocês. Ninguém é insubstituível. Persistência é uma coisa, teimosia é outra.” Etc, etc.

Terminada a palestra, os participantes, organizados em três equipas, regressam às suas mesas de trabalho. Em cima de cada uma está um Business Model Canvas, uma ferramenta criada por um dos gurus do empreendedorismo, Alexander Osterwalder — na prática, uma folha de papel dividida em nove espaços, cada um com várias perguntas. Por exemplo, no quadradinho dedicado aos clientes: para quem é que estamos a criar valor? Quem são os nossos clientes mais importantes? Ao lado surgem, implacáveis, outras perguntas sobre canais de distribuição, potenciais parceiros de negócio, estrutura de custos. Em cima de cada quadrado vão-se somando post-its com tentativas de respostas.

“Um dos objectivos da nossa metodologia é mostrar que, se tivermos de falhar, é melhor falharmos o mais cedo possível”, explica Rafael da Startup Pirates. Inês acrescenta: “Não queremos que as pessoas estejam fechadas numa garagem durante dois anos a desenvolver um produto, sem falarem com ninguém, e quando chegam ao mercado percebam que aquilo não é preciso para nada. Nessa altura já perderam dois anos. E isso é mais comum do que se pensa.”

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No Startup Pirates de Braga os participantes estão organizados em grupos que irão apresentar projectos de potenciais negócios rita frança

Um dos grupos de participantes já aprendeu essa lição. Jorge, Cecília e Filipe tinham como projecto a criação de uma app. Como em todos os projectos, a primeira pergunta a que tinham de responder era: qual o problema que o vosso produto se propõe resolver? “O problema da indecisão quando é preciso escolher um sítio onde ir à noite beber um copo, seja um bar, uma discoteca…”, explica Jorge. “A ideia era que a aplicação gerasse uma escolha ou um roteiro, dando informação e eventualmente uma panorâmica do local, que podia ser partilhada entre os amigos, funcionando como uma rede social.”

Mas uma sessão com um dos mentores convidados pelos Startup Pirates revelou-se um balde de água fria. “Nós pensávamos que seria uma novidade, mas [o mentor] disse-nos que o mercado está saturado deste tipo de aplicações, por isso estamos a reformular a ideia”, continua Jorge. O Business Model Canvas está aberto à frente deles, cheio de post-its coloridos, mas neste momento não serve de muito porque os três ainda não encontraram a melhor saída para o projecto que terão de apresentar no último dia perante um júri que irá avaliar todos os trabalhos — e premiar um.

Isso não significa que tenham desanimado. Pelo contrário, estão a encarar as dificuldades como uma parte do processo que os irá preparar para o mundo das startups. “Deixei um emprego seguro para me dedicar a isto”, conta Cecília. “Queria fazer este teste. É a primeira vez na minha vida que estou sem emprego. Mas, com 32 anos, achei que estava na altura ideal. Tinha muita vontade de ser empresária.” Confessa que chegou ao workshop achando que “tinha um projecto já consolidado”, mas as perguntas dos dois colegas (que conheceu aqui mas de quem já se sente amiga) abalaram-lhe as convicções. “O que foi óptimo para mim”, garante. “Às vezes choramos, às vezes rimos, mas pela primeira vez estou a viver ‘à séria’.”

Na mesa ao lado, outro grupo de três participantes também está a enfrentar algumas dificuldades, mas poderá já ter encontrado forma de “dar a volta” ao projecto que têm em mãos. André, Hugo e Rodrigo também não se conheciam. Cada um chegou com uma ideia, mas como aqui o objectivo é que trabalhem em conjunto centraram-se numa delas: criar uma aplicação (sim, muitos dos projectos de startups são para criar aplicações) que ajude as pessoas a poupar.

Também neste caso os mentores fizeram as perguntas difíceis e o projecto tremeu. “Aconselharam-nos a pensar numa solução com pouco cariz tecnológico”, resume Hugo. E, de uma aplicação para dispositivos móveis, a ideia passou para mealheiros físicos, talvez com a forma do objectivo de poupança de cada um (um avião para uma viagem, por exemplo). Mas será que as pessoas querem mesmo ajuda para poupar? “A fase seguinte é irmos para a rua e começarmos a perguntar. Não será uma amostra representativa, mas dá para ter uma ideia.”

Chegamos, por fim, à mesa do terceiro e último grupo, onde se discute uma proposta que não é tecnológica: Joana quer recuperar receitas antigas de doces regionais e “reintroduzi-los em Braga”. A parte de investigação das receitas já foi feita e os doces já foram testados. É altura de perceber como pode passar à prática e para isso está a trabalhar com o Carlos, a Sílvia e o Delmar, que conheceu aqui.

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Os Startup Pirates já organizaram perto de 50 programas e têm vindo a espalhar-se pelo mundo, da Europa à Ásia. O modelo que criaram é replicável e por isso são contactados por grupos nestes países que querem aplicá-lo num regime de franchising. rita frança

Até hoje, os Startup Pirates já organizaram perto de 50 programas como este. No site da empresa, um mapa do mundo mostra como os “piratas” se têm vindo a espalhar — Europa, Norte de África, mas também América do Sul e até Ásia, onde já organizaram programas no Paquistão. O modelo que criaram é replicável e por isso são contactados por grupos nestes países que querem aplicá-lo num regime de franchising.

“Hoje trabalhamos desde o Paquistão ao Peru e os países não são assim tão diferentes”, constata Inês. “No Brasil, temos visto um grande entusiasmo pela área do empreendedorismo e uma grande vontade de fazer acontecer. No Leste, Roménia, Hungria, Eslováquia, Polónia, também há muito entusiasmo. Depois há alguns pólos, como Paris, onde há grandes players, Londres, Berlim. No Paquistão, por exemplo, temos duas startups que nasceram do nosso programa. Isto é uma linguagem global. Se eu fizer uma skype call com alguém na Argélia, no Peru ou no Paquistão, todos temos acesso ao mesmo conhecimento, lemos os mesmos blogues, seguimos as mesmas pessoas no Twitter, há uma cultura global de empreendedorismo.”

E como é que tudo começou? “Quando começámos a pensar nisto, em 2010, 2011, a realidade do empreendedorismo em Portugal era praticamente inexistente”, explica Inês. “Uma das razões que nos levaram a tomar esta iniciativa foi a nossa insatisfação com a ausência desta temática no ensino”, intervém Rafael. “Sentíamos que nas universidades não era dada a devida importância ao empreendedorismo e que se continuava a pensar que o normal era uma pessoa tirar o curso e entrar numa grande empresa. Não defendemos que todos devemos ser empreendedores, mas há uma atitude que, essa sim, todos podemos cultivar. E muitas das ferramentas e metodologias que usamos no nosso programa ajudam também a trazer inovação para dentro de empresas que já existem.”

Desde o nascimento dos Pirates, em 2011, até hoje, muita coisa mudou. Inês: “De repente, Portugal deu um salto gigantesco nesta área. Todos os dias nos jornais, nas televisões, fala-se em empreendedorismo, incubadoras, investimentos.” A crise teve aí um papel, claro. “Em 2007/8 tornou-se mais barato criar empresas, passou a haver mais ferramentas disponíveis e muitas delas gratuitas. Apercebemo-nos de que as grandes empresas não estavam a criar emprego e por isso era preciso olhar para outro lado.” O Governo também apostou na área, as universidades começaram a estar mais atentas e a sociedade civil envolveu-se.

E a ideia de empreendedorismo tornou-se até espectáculo televisivo, com um programa como o Shark Tank (em Portugal na SIC), no qual cinco “tubarões” (leia-se empresários de sucesso) “vivem numa procura constante de novos negócios em busca do melhor que os empreendedores portugueses têm para oferecer”, como resume o texto de apresentação, que não esconde a aposta no dramatismo, avisando que “eles são duros nas negociações, mas dão-lhe a possibilidade de vir a realizar o sonho da sua vida”.

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"Não defendemos que todos devemos ser empreendedores, mas há uma atitude que, essa sim, todos podemos cultivar", explica Inês Santos Silva, co-fundadora dos Startup Pirates rita frança

E não há o risco de tudo isto, de repente, parecer demasiado fácil e de todos sonharem ser o próximo Steve Jobs ou criar a próximo Facebook?

“Tentamos explicar que o programa da Startup Pirates é sobretudo uma experiência: as pessoas podem entrar sem conhecer ninguém e sair dali com uma empresa”, diz Inês. “Podem avançar rapidamente com as suas ideias e ir buscar financiamento de forma mais fácil. Ou então simplesmente perceber que a ideia não tem pernas para andar. Para nós, isso não é falhar mas sim aprender a não gastar dinheiro numa coisa que ninguém vai querer. É uma experiência muito intensa, das nove da manhã às vezes até às dez da noite ou mais. E também muito emotiva, porque as pessoas estão muito ligadas às ideias que trazem. Há quem esteja seis meses a trabalhar numa ideia e depois perceba que afinal ela não pode arrancar. Às vezes há choro, as emoções estão ao rubro.”

Rafael fala em diferentes fases: “Normalmente na primeira sessão de mentoria há um choque com a realidade porque os mentores começam a fazer perguntas difíceis, para as quais as pessoas não estavam preparadas e começam a aperceber-se de que a ideia não estava tão sólida como imaginavam ou que não resolve nenhum problema. Há um momento de depressão, mas na sessão seguinte há um momento de crescimento e nós notamos isso.”

Fundamental no processo de desenvolver uma ideia é saber comunicá-la — e aprender a fazer um bom pitch (apresentação) de forma muito rápida e eficaz é uma das ferramentas que o programa oferece. “A comunicação pesa mais do que queremos admitir”, alerta Inês. “Se temos à nossa frente um investidor e não conseguimos traduzir o potencial da nossa ideia, perdemos a oportunidade do investimento”, sublinha, por seu lado, Rafael.

Há, nisto tudo, um número que convém não esquecer, mesmo quando as coisas parecem estar a correr bem: “90% das startups falham”, lembram os “piratas”. “A maior parte morre à nascença, em três a seis meses.” Houve uma altura em que “era uma moda”, recorda Inês. “As pessoas tinham uma ideia na segunda-feira, criavam uma página de Facebook na terça e na quarta já acabava tudo porque afinal não dava. Houve uma grande excitação em Portugal nessa área. Agora já estamos numa fase em que as pessoas perceberam que ser empreendedor não é para todos.”

Vale a pena regressar aqui a um dos conselhos deixados por Pedro Fraga no workshop: “Se forem muito bons, podem ter o mundo aos vossos pés. Se se convencerem demasiado cedo de que são muito bons, podem ir pelo cano. Só os projectos muito extraordinários é que vão vingar.”

E quando é que uma startup deixa de o ser? “Segundo a nossa definição, uma startup é uma empresa de base tecnológica que está à procura de um modelo de negócio que seja replicável e escalável. Se o modelo de negócio já está bem definido, já não é uma startup”, explicam Inês e Rafael. A isto soma-se um lado de risco e um lado de inovação. Piratas, portanto?

Curiosamente, os novos empreendedores são mesmo por vezes comparados aos piratas. É o que faz Jean-Philippe Vergne da Ivey Business School da Universidade de Ontario, nos Estados Unidos, onde dá o curso Lessons From the Dark Side of Capitalism: How Pirates Help to Shape New Industry (Lições sobre o Lado Obscuro do Capitalismo: Como É Que os Piratas Ajudam a Moldar a Nova Indústria). Vergne explica que muitas vezes é do lado dos piratas — e estamos a falar de ideias inovadoras e, eventualmente, ilegais — que surgem as mudanças.

Sem fazer julgamentos morais, o que Vergne defende, como explica um artigo de Daina Lawrence no The Globe and Mail, é que os piratas “têm uma função económica porque podem reorganizar ou desmantelar monopólios e deslocar regras governamentais que por vezes já estão ultrapassadas”. O mesmo artigo cita como exemplos bem sucedidos (apesar das questões legais que têm enfrentado por todo o mundo) empresas com o serviço de transporte alternativo aos táxis Uber, ou o Airbnb, de aluguer de casas — ambos colocam em risco negócios mais do que estabelecidos como os táxis (em Portugal, a Uber acaba de ser proibida por decisão judicial) ou a hotelaria, mas inovam e conquistam um número crescente de clientes.

Estes exemplos têm, obviamente, uma imensa influência. Um outro artigo, de Geoffrey A. Fowler no The Wall Street Journal, intitulado Agora há um Uber para tudo, descreve a febre de apps que se apoderou (neste caso) de São Francisco, onde o autor vive. Há aplicações para tudo desde entrega de flores, a massagens ao domicílio, passando por serviços de lavagem de roupa, médicos, compra de álcool (ou marijuana para fins médicos), pôr cartas no correio ou estacionar-nos o carro.

Pode haver um Uber para tudo, mas não há certamente espaço para todas as aplicações saídas da imaginação de todos os potenciais empreendedores no mundo. Há uma (muito grande) selecção natural. Provavelmente vai continuar a haver piratas (e, aqui e ali, surgirá um Jack Sparrow, único e inimitável) e vai continuar a haver muita gente a sonhar ser pirata. Alguns vão fazer-se ao mar e conseguir — a Startup Pirates é um bom exemplo. Os outros… bem, os outros vão mesmo ter de se juntar à Marinha.

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