Piolhos e gafanhotos no Parlamento

Foi o último debate do estado da nação da legislatura. A Assembleia da República mais parecia a Assembleia do Reino de Deus. O PS abriu o Novo Testamento e o PSD respondeu com o Antigo Testamento. Pregaram-se sermões, prometeram-se milagres, jurou-se e esconjurou-se e até se exorcizaram fantasmas do passado. O espírito de Sócrates, a “assombração” como lhe chamou Paulo Portas, continua a pairar sobre a bancada socialista.

De uma assentada violaram-se no debate uns três ou quatro mandamentos. Os deputados invocaram em vão o nome de Deus, levantaram falsos testemunhos e cobiçaram as coisas alheias. Passos lembrou a "incompreensível azia do PS com os resultados que vão sendo divulgados sobre o desempenho económico em Portugal". O PS retribuiu acusando Passos de "mentir cirurgicamente" sobre o estado do país, deixando uma profecia: "Isto vai virar."

Como ainda não se sabe se isto vai virar e para que lado é que vai virar, Paulo Portas, pelo conteúdo e sobretudo pela ausência de radicalismo na linguagem, conseguiu talvez o discurso mais equilibrado do debate. Até recuperou o “há mais vida para além do défice” do socialista Jorge Sampaio. Passos engoliu em seco. O primeiro-ministro não é crente e não acredita que haja mais vidas para além daquela que andámos a viver nos últimos quatro anos. Até já há quem na São Caetano à Lapa tema que Portas, se o PS vencer sem maioria, possa violar aquele outro mandamento sobre o adultério. As juras de amor eterno nos estatutos da coligação só são válidas se a maioria ganhar as eleições.

Quem pouco ou nada está a ajudar o PS a ganhar eleições é Ferro Rodrigues. Não tem jeito para ser líder da bancada parlamentar. O fim do debate do estado da nação terá sido um alívio para o próprio e para António Costa, que o escolheu para um cargo que deveria estar reservado para um tribuno mais dotado e que preparasse melhor os debates políticos. Quando no final da sua intervenção os deputados do PS o aplaudiram de pé, percebeu-se que foram palmas combinadas, palmas de nervosismo e palmas de alívio. Palmas de alegria porque foi a última intervenção de Ferro Rodrigues na legislatura.

No debate, Ferro recuperou os “sete pecados capitais do Governo" que António Costa há uma semana enumerou no Largo do Rato. A previsibilidade é tanta que, aos pecados de Costa, Passos Coelho contrapôs “as dez pragas da herança socialista", numa alusão às dez pragas do Egipto. Não se falou de rãs, piolhos, moscas, doenças ou de gafanhotos, mas falou-se de opções de política económica, algumas igualmente repugnantes. Mas vamos às pragas, uma a uma.

1. As “obras faraónicas como as PPP e o TGV”. Passos tem razão. Que o digam os 1,5 mil milhões de euros que gastamos por ano a pagar as PPP. Fazer obra à grande e à fartazana e enviar a factura para a futuro é uma habilidade política que deveria ser considerada um pecado capital. E que já vem desde o último Governo de Cavaco Silva.

2.  “Os PEC de má memória que não resolveram nada e que trouxeram cortes de salários na função pública.” É preciso ter alguma lata para falar sobre cortes salariais no Estado, vindo de alguém que se propõe manter os cortes até 2019 e que se não fosse o Tribunal Constitucional há muito que os funcionários públicos já tinham deixado de ter subsídios de férias e de Natal.

3. "Uma das maiores desigualdades entre os países da União Europeia.” É uma conversa entre o roto e o nu. É verdade agora, como era verdade no tempo de Sócrates, como era no tempo do Governo social-democrata que o antecedeu.

4. "Défices orçamentais ruinosos.” Uma verdade cristalina. No final da governação socialista, o défice superava os 10%. Uma coisa é haver vida para além do défice. Outra bem diferente é viver só do défice.

5. "Défices externos preocupantes." Outro tema para a animada conversa entre o roto e o nu.

6. "Completo desgoverno do Sector Empresarial do Estado." Mais um problema que não surgiu por obra e graça do espírito santo. Foram sucessivos governos, laranja e rosa, a engordar o monstro e a premiar os fiéis militantes com cargos de chefias na administração dessas empresas.

7. "A nacionalização do BPN.” É injusto analisar a solução que foi encontrada para o BPN aos olhos de hoje. E numa altura em que nem em Portugal nem no resto da Europa havia uma lei que contemplasse a resolução. É a mesma coisa que acusar um bombeiro de partir um candeeiro (caro, sem dúvida) quando este tentava dominar o incêndio que tomava conta da casa.

8. O “défice tarifário na electricidade”. Uma praga semelhante à primeira e uma herança que nos deixou Manuel Pinho. Cá estaremos até 2020 para o pagar.

9. O “endividamento galopante”. Passos tem razão. Foi uma subida de 20 pontos em sete anos de governação socialista. O PS contrapõe que com Passos Coelho e a troika o aumento ainda foi maior. Mas é preciso não esquecer que o empréstimo da troika não serviu apenas para fazer o rollover da dívida. Foi preciso financiar o défice da praga número 4. Pagar as facturas das pragas 1, 5, 6, 7 e 8. E já agora não esquecer da monumental desorçamentação (das empresas públicas à reclassificação das PPP) e o colossal buraco na Madeira.

10. A última praga é o “desemprego estrutural acima dos 10%” Continua a conversa entre o roto e o nu. Quem tem razão? Venha o diabo e escolha.

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