Para onde volta o trabalho humano?

Sob formas sub-reptícias, há novamente sinais de desumanização, injustiça social, perda de dignidade e, sempre a par do muito medo pelo trabalho (do desemprego).

Domingo, 1 de Maio de 2016. Descanso. É o que, para maioria de nós, costuma significar qualquer domingo.

Contudo, este domingo (ainda) mantém uma indelével marca de trabalho. Aliás, do Trabalho, com maiúscula, dada a projecção histórica, social e política, de tal marca.

Há cento e trinta anos, um acontecimento houve com repercussões tão importantes que, dada a centralidade que o trabalho tem na vida de cada um e na de todos, de algum modo, ainda hoje têm a ver com a vida de cada pessoa e da sociedade.

No início de Maio de 1886, em Chicago, nos Estados Unidos da América, foram massacradas (feridas e mortas) dezenas de pessoas que lutavam por algo que hoje já (ou ainda…) consideramos elementar e definitivamente adquirido: a limitação do horário de trabalho a oito horas diárias.

Não é propósito deste texto pormenorizar esses acontecimentos nos quais radica que, também em Portugal, se tenha passado a assinalar (pela primeira vez, em 1890 e, em liberdade depois de 48 anos, desde 1974), no primeiro de Maio, o Dia do Trabalhador.

O que aqui nos interessa frisar é o contraste do mundo do trabalho desses tempos e nos subsequentes com o mundo do trabalho dos dias de hoje. O contraste ou… as coincidências.

Então, para esses trabalhadores chacinados em Chicago pela polícia, o que estava em causa era, fundamentalmente, na expectativa de uma míngua de descanso e de disponibilidade para a família, porem cobro a jornadas de trabalho que podiam ir até às 10, 12 e mesmo 16 horas de trabalho por dia.

Mas, mais do que “apenas” isso, do que a específica questão do tempo de trabalho (apesar da incomensurável importância desta questão, visto que não dispor livremente do “seu tempo” porque subordinado a alguém e numa condição de trabalho “alienado”, é, nesse tempo, não dispor da sua vida), não se pode escamotear todo o condicionalismo laboral, social e político da Revolução Industrial, em que preponderava o ultraliberalismo económico (“neutralidade do Estado”) e, daí, falta de regulamentação (consagração legal de direitos / obrigações) e de suficiente regulação (controlo público do cumprimento da lei), tendo por efeito individualização generalizada das relações de trabalho, desequilíbrio de poder e de rendimentos a favor dos “patrões”, prolongada duração diária e semanal do trabalho, baixos salários, degradadas condições de segurança e saúde, trabalho infantil.

A História regista bem esse período de alienação, de desumanização, de indignidade e de medo do e no trabalho mas, também, ao mesmo tempo, “compensando-o”, sublimando-o, de medo pelo trabalho, pela perda deste, pelo desemprego.

O progressivo reconhecimento institucional e político das consequências sociais e políticas de tal situação no mundo do trabalho, a organização e luta dos trabalhadores e o crescente envolvimento de instituições internacionais e europeias (várias associações, a própria Igreja, a OIT e outras), levou a que, em cada vez mais países, o Estado alterasse a sua posição “neutral” perante essa importantíssima Questão Social.

E assim, para além do enquadramento institucional e associativo, instituiu-se e desenvolveu-se a regulamentação do trabalho (Direito do Trabalho) que conferiu direitos sociais (salários, horário de trabalho, férias, condições de segurança e saúde nos locais de trabalho, etc.), bem como o respectivo controlo público (Inspecção do Trabalho, criada e internacionalizada a partir de uma convenção da OIT de 1947) da sua aplicação, a par da organização dos trabalhadores em sindicatos e, muito daí e da sua promoção política, a institucionalização, aprofundamento e alargamento da contratação colectiva de trabalho.

Em Portugal, muito embora o período do Estado Novo tenha sido marcado por um retrocesso nesse domínio, sobretudo depois de 1974, verificou-se uma maior estabilidade, equidade, dignidade e humanidade nas relações de trabalho, melhoria progressiva das condições de trabalho e da conciliação do trabalho com a vida familiar e, em geral, uma progressiva maior justiça social, assente na dignificação e valorização do trabalho.

Contudo, o que é que, muito na Europa e concretamente em Portugal, hoje e progressivamente pelo menos desde há mais ou menos três décadas, (de novo) “vemos, ouvimos e lemos” (e vivemos) no mundo do trabalho?

Crescente fragilização legal e de facto da condição dos trabalhadores nas relações de trabalho; desregulamentação da legislação laboral (sob a invocação, recorrente, de “reformas estruturais”, mais especificamente, da “reforma do mercado de trabalho”), com eliminação ou diminuição (de direito e ou de facto) dos direitos sociais; congelamento da contratação colectiva de trabalho e consequente individualização das relações de trabalho; precariedade dos vínculos laborais como regra; (ainda) maior facilidade e discricionariedade nos despedimentos colectivos e individuais (quer pela via da redução das indemnizações, quer pela insegurança decorrente da precariedade dos vínculos, quer, ainda, pela alteração dos critérios de selecção dos trabalhadores a despedir); crescimento das desigualdades sociais com desvalorização dos rendimentos do trabalho pela via da sua diminuição real e nominal, directa ou indirecta (por exemplo, pelo aumento da duração do trabalho sem qualquer acréscimo remuneratório correspondente); crescente desregulação (incumprimento da lei), com sobreintensificação do trabalho em ritmo e ou em duração (não obstante tal transpareça dos “papéis”, há muita gente em Portugal a trabalhar regularmente por semana 50, 60 e, nalguns casos, 70 horas por semana); em certas zonas e sectores de actividade e com certos produtos e operações, novas formas de trabalho infantil, ainda que invisível porque “deslocalizado” para a casa dos pais dos “putos” para “entretenimento” e mais algum rendimento da família; degradação das condições de segurança e saúde nos locais de trabalho, também com muita invisibilidade dos acidentes e sobretudo das doenças profissionais, físicas e mentais, daí decorrentes.

Entretanto, não aumentou a protecção social no desemprego, cujo volume real (ainda que das estatísticas oficiais tal não transpareça publicamente), se mantém “intolerável”.

Em síntese, o que é que, apesar de imperceptível a muita gente porque sob o “manto diáfano” da “inovação tecnológica” e dos “novos modelos de gestão” (agora especializados em diminuir os “custos” e “optimizar a rentabilidade competitiva” dos “recursos” e “capital” humano nos locais de trabalho), por aí (de novo) temos no mundo do trabalho?

Sob formas sub-reptícias, novamente sinais de desumanização, injustiça social, perda de dignidade e, sempre a par do muito medo pelo trabalho (do desemprego), crescente medo no e do trabalho.

Há mais ou menos um ano, em 19//3/2015, publicou-me o PÚBLICO um artigo a que dei o título “Para onde vai o trabalho humano?”. O mote desse artigo era um livro (Où Va le Travail Humain?), editado em 1953 pelas Éditions Gallimard (Paris), de um dos precursores da Sociologia do Trabalho, Georges Friedmann (Paris, 13/5/1902 – 15/11/1977).

O trabalho que Georges Friedmann analisou neste livro (e noutros), apesar de, então, em 1953, já passado mais de meio século sobre os acontecimentos de 1886 em Chicago, foi um trabalho ainda com muitas características do condicionalismo laboral que atrás se referiu como contextualizador desses acontecimentos de há 130 anos.

Hoje, no século XXI, há, sem dúvida, talvez ainda mais pertinência (e premência) para se perguntar (e debater, … para algo fazer), como há 63 anos, nesse livro, perguntou Georges Friedmann: “para onde vai o trabalho humano?”

Contudo, com este objectivo retrocesso humano e social que por aí grassa no mundo do trabalho, talvez que, se fosse vivo, Georges Friedmann (se) perguntasse, para além de, ainda, “para onde vai” (mormente no sentido de porque continua tanto a “desaparecer”), sobretudo, (se) questionasse para onde volta o trabalho humano.

Inspector do trabalho (aposentado)

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