Pagamento aos credores do Banco Privado Português bloqueado em tribunal

Julgamento de João Rendeiro, Paulo Guichard e Fezas Vital arranca na próxima semana. Os três são acusados de burla qualificada.

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Nelson Garrido

Quase quatro anos depois de o Banco de Portugal (BdP) ter retirado a licença bancária ao Banco Privado Português, contínua pendente no Tribunal Administrativo de Lisboa o recurso interposto pela Privado Holding (PH, que controlava o banco) para que a decisão do supervisor seja anulada. A ausência de deliberação do tribunal teve como principal consequência a suspensão da liquidação do BPP o que tem dificultado a venda de activos, cujo produto se destinará a pagar aos credores.

A 15 de Abril de 2010, o Banco de Portugal revogou a licença bancária ao BPP, depois de, em Dezembro de 2008, a gestora de fortunas, então liderada por João Rendeiro, ter sido intervencionada por se revelar incapaz de cumprir com as suas obrigações. Em 2008, o BPP reportou prejuízos de 800 milhões de euros, quando o sector, no mesmo ano, registou um lucro superior a 2 mil milhões de euros. 
 
Logo de seguida, a Privado Holding, sociedade que controlava o BPP, impugnou o acto administrativo do BdP junto do Tribunal Administrativo de Lisboa (TAL). Em consequência, o Tribunal do Comércio de Lisboa, seguindo a lei, determinou a suspensão imediata da liquidação do BPP e da partilha dos bens. A Comissão Liquidatária (CL), presidida por Luis Máximo dos Santos, recorreu para o Tribunal da Relação mas perdeu. E, assim, quase quatro anos depois, contínua a aguardar pela decisão do tribunal da primeira instância.
 
“Sem se conhecer a decisão final […] a venda de activos do BPP só se poderá fazer, neste momento, em condições muito especiais [158.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas] ”, explicou ao PÚBLICO Máximo dos Santos, para quem os atrasos na pronúncia são “lamentáveis”. “E, provavelmente, ainda vamos ter de esperar pela decisão de um eventual recurso…” Entraves que não atingem, porém, “as demais tarefas de liquidação do BPP, designadamente a continuação do processo de recuperação de crédito”.
 
O gestor de falências lembrou que “parte dos créditos que a CL tem a recuperar são de entidades do grupo Privado Holding”, sociedade que “tem procurado, através de todos os meios, eximir-se às suas responsabilidades para com o BPP, não hesitando sequer em recorrer a expedientes contabilísticos totalmente ilegítimos e inaceitáveis”. O BPP requereu a insolvência da PH em Abril de 2012, mas o tribunal, em Janeiro de 2013, indeferiu, alegando que a CL não tinha feito prova cabal da existência de descobertos bancários. “Foi uma decisão muito infeliz, a vários títulos”, considera Máximo dos Santos, que recorreu para o tribunal da relação de Lisboa que ainda não se pronunciou.
 
Apesar de se encontrar numa situação de insolvência (face ao volume das responsabilidades) a PH, que tem como accionistas João Rendeiro, Francisco Balsemão, Stefano Saviotti, “tem activos que devem ser mobilizados para solver parte das responsabilidades da PH perante o BPP, e que depois serão adstritos ao pagamento dos credores”, sustenta Máximo dos Santos.
 
A CL já publicou a lista de créditos reconhecidos (1,5 mil milhões de euros) e não reconhecidos (900 milhões). Do universo de 6000 mil credores, 300 impugnaram judicialmente. A expectativa é a de que a sentença de verificação e graduação de créditos seja dada nos próximos meses. O Estado reclama 450 milhões, valor reconhecido pela CL como crédito garantido e terá primazia no pagamento, o que é contestado. As actuais disponibilidades líquidas da massa insolvente (depósitos e obrigações do tesouro) rondam 362 milhões de euros. Mas o BPP possui activos superiores [imóveis, colecção de arte, títulos] por realizar, mas devido à suspensão da liquidação qualquer alienação só pode ocorrer em condições excepcionais.
 
Há ainda 64 milhões de euros, na disponibilidade do BPP, mas que são liquidez segregada da massa falida (são da titularidade de clientes, muitos devedores), e 100 milhões de euros depositados na CGD, no contexto de uma acção de consignação.
 
No âmbito da liquidação estão a decorrer várias acções nos tribunais [não criminais], como seja a qualificação da insolvência, em que se procura apurar se foi (ou não) culposa, como alega a CL, estando o julgamento a aproximar-se do fim. Se o tribunal der razão à CL, então terá de imputar aos responsabilidades ex-gestores, o que terá implicará a inibição de gestão em qualquer sector.
 
A par da insolvência do BPP, há outros processos a serem dirimidos nos tribunais (cíveis e criminais) envolvendo o banco e ex-responsáveis, como Rendeiro, Paulo Guichard e Salvador Fezas Vital. Só o BPP tem mais de 100 acções em curso, algumas de recuperação de crédito. Outras iniciativas partiram de terceiros. Um dos inquéritos criminais, designado “caso BPP”, começou há mais de cinco anos, com vários arguidos. O BPP está constituído como assistente e não conheceu até agora despacho de acusação ou de arquivamento.
 
Fraude fiscal, falsificação de contas, branqueamento de capitais, burla qualificada, em co-autoria, são alguns dos crimes e das contra-ordenações de que o BPP e os seus ex-dirigentes são acusados pelas autoridades policiais e pelos dois reguladores, BdP e CMVM.
 
O BdP foi a primeira entidade a concluir os processos de natureza sancionatória.Em Outubro de 2013, aplicou multas de 11 milhões de euros a 11 ex-entidades (BPP, PH, Rendeiro, Guichard, Fezas Vital, Vítor Castanheiro, Fernando Lima, Paulo Lopes, Tiago Ferreira, Rui Domingos e Nuno Paramés). Os ex-gestores foram inibidos do exercício de actividade, medida circunscrita ao sector financeiro. Ao Jornal de Negócios, o advogado de Rendeiro [multa de dois milhões], e ex-presidente da Mesa da Assembleia Geral da Privado Holding, José Miguel Júdice, da sociedade de advogados PLMJ, disse que ia recorrer para os tribunais por “a prova produzida” pelo BdP “não permitir que as acusações fossem provadas”.
 
O supervisor acusa, entre outras coisas, os ex-gestores de falsificação de obrigações associadas aos produtos de retorno absoluto (capital garantido) onde os clientes aplicavam as poupanças. Como os valores mobiliários estavam, em 2008, a sofrer fortes desvalorizações, criaram títulos fictícios que colocavam nas carteiras dos clientes para compensar as perdas reais. O BdP alega que, já depois da falência do Lehman Brothers, onde o BPP investiu, Rendeiro concebeu um esquema [adulterando e-mails] para não reflectir os prejuízos no balanço e desviá-los para as carteiras dos clientes. Por seu turno, a CMVM avançou também com contra-ordenações e deduziu, há cerca de um ano, a acusação contra os ex-gestores do BPP. O processo está em fase de decisão que deve ser produzida até final do primeiro trimestre.
 
Já o processo-crime principal, o “caso BPP”, que incide sobre a actuação da gestão de Rendeiro, e as relações com os clientes e o fisco, produziu derivações. A primeira a chegar aos tribunais criminais está relacionada com uma operação de aumento de capital da Privado Financeiras, veículo de investimento criado por Rendeiro para comprar acções do BCP, que gerou “um prejuízo patrimonial” de 41 milhões para uma centena de ofendidos.
 
Em Outubro de 2013, o Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) confirmou na íntegra a deliberação do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa que acusa Rendeiro, Vital e Guichard de burla qualificada em co-autoria. O arranque do julgamento esteve marcado para esta terça-feira, mas foi adiado por requerimento dos arguidos que alegaram questões de prazos.
 
A primeira sessão (de 22 previstas) começará dia 12 de Fevereiro às 9.30, na 2ª Vara Criminal do Tribunal, no Campus da Justiça, em Lisboa. Vão ser ouvidas 150 testemunhas, 30 já pediram para se constituírem como assistentes. Se a acusação for confirmada, os arguidos podem ser castigados com o pagamento de coimas e penas de prisão de dois a oito anos. Para o Ministério Público, os três ex-banqueiros “enganaram” os clientes do BPP e os investidores da Privado Financeiras e constituíram “de forma voluntária, consciente e intencional uma errada convicção acerca da sustentabilidade financeira do veículo [PF]”.
 
O juiz Carlos Alexandre que instruiu o processo de acusação alertou o tribunal para o historial de transferências para o estrangeiro de património dos três ex-gestores, alegando que estes dispõem agora de condições para deixar Portugal e se instalarem em países com os quais não existem acordos de extradição. Argumentos que não convenceram o colectivo de juizes por ausência de “circunstância que cause algum alarme sobre o comportamento processual dos arguidos que convenha acautelar”.
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