“Os portugueses não podem esperar que a Europa resolva os seus problemas”

Jacob Soll, historiador da contabilidade, gostaria de estar errado quando pensa que há outros “Espírito Santo” na Europa. O caso BES, diz, é paradigmático pelas falhas de transparência e aos cidadãos cabe exigir mais transparência pública.

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“A sociedade precisa de partidos políticos que promovam a transparência”, diz Soll Miguel Manso

Jacob Soll entrou num jogo delicado: explicar como os contabilistas governam o mundo, como o bom ou mau uso dos números determina a ascensão ou queda das nações e empresas. Na obra O Ajuste de Contas, lançada em Portugal na semana passada pela Lua de Papel, o historiador norte-americano destrinça a complexa relação entre contabilidade, transparência e responsabilização financeira.

Faz um retrato casuístico, percorrendo vários séculos – dos funcionários que supervisionavam os cofres públicos na Roma antiga, ao papel dos Médicis na ascensão de Florença, passando pela influência da literacia financeira nos impérios holandês e britânico. Na edição portuguesa do livro, Soll recua à governação do Marquês de Pombal para mostrar como a reforma centralizada das finanças públicas permitiu avanços mas não foi totalmente eficaz. Porque sem “números correctos a partir das bases” e sem uma sociedade com literacia financeira, o sistema não funciona. Em entrevista ao PÚBLICO, o historiador assinala as “diferentes tradições de responsabilidade” financeira na Europa. A história – frisa – ajuda-o a suportar a ideia de como o BES é um caso de má contabilidade e de falhas de supervisão.

No livro, sublinha como a contabilidade pode determinar a ascensão e queda das nações. Na Europa, os governos europeus vivem hoje sob forte controlo da UE, mas o escrutínio não impediu evitar a crise, nem o colapso de bancos. O problema é de transparência?
As instituições não bastam para fazer esse escrutínio. É preciso haver participação cívica, uma cultura de responsabilização e transparência sobre a informação pública. Um exemplo – alguém afrontou o Banco Espírito Santo (BES) e disse: “Queremos ter acesso às contas de todas as holdings no Luxemburgo, da família”? Ninguém o fez. Na Europa, as instituições estão a tornar-se muito complexas, ao ponto de tornarem o controlo muito difícil. Precisamos de uma imprensa económica forte e de exercer pressão pública sobre os partidos políticos, exigindo reformas para que as regras de regulação funcionem. É possível. Basta haver vontade pública e uma sociedade com uma cultura de literacia financeira. Na era de ouro da Holanda, na Inglaterra do século XVIII e na Alemanha do século XIX, as pessoas aprendiam contabilidade na escola e registavam as contas todos os dias à noite, antes de dormir. Perdemos este hábito de transparência. “Abram os livros, quero que haja uma auditoria!”.

Estamos a viver uma crise de confiança nas instituições?
Absolutamente. Ninguém tem confiança nas instituições e isso paralisa a democracia. Não nos questionamos sobre questões básicas da democracia. Esse é o problema. Juntem-se e avancem com um movimento popular. Pode parecer despropositada, mas esta ideia de escrutínio público já tem centenas e centenas de anos. Esperar que as culturas financeiras se reformem por si próprias é o mais difícil de concretizar.

Que lições da história nos ajudam a lidar com estas falhas?
Recuemos ao Charles Dickens e à Inglaterra do século XIX – o período que mais se aproxima do tempo que estamos a viver. Os problemas sucediam-se e ninguém acreditava em nada. Tudo se revelava ser uma fraude. Os bancos, as companhias públicas tornavam-se multinacionais e estavam presentes em todo o lado. A literatura, a imprensa económica, firmas de contabilidade independentes, a contabilidade estão representadas na pintura. Havia uma cultura de transparência que não era apenas uma expressão, mas uma prática enraizada no dia-a-dia. Hoje, quando abrimos um jornal ou procuramos alguma coisa no Youtube, o que é que encontramos sobre contabilidade? Parece paranóico e estúpido, mas é verdade. Balzac era fascinado por contabilidade…

Hoje, temos muito mais formas de escrutínio sobre os poderes públicos.
A questão é que hoje tudo se desenrola com mais rapidez e o acesso à informação é tão vasto. Não nos focamos em coisas que exigem tempo, como a contabilidade. Quando estamos a passar por uma crise, temos de reclamar transparência e responsabilidade. É, desde logo, preocupante o facto de este ser o primeiro livro sobre a história da contabilidade…

Na Europa, os países do Norte e os do Sul têm formas diferentes de encarar a contabilidade?
Cada país tem a sua tradição. O que há são diferentes tradições de responsabilidade, não de contabilidade.

O que é que isso significa?
Podemos perguntar-nos: os banqueiros são mais responsáveis na Alemanha ou aqui? É uma pergunta difícil. Há países mais responsáveis, o que significa melhor contabilidade. Na Holanda, as pessoas são muito rigorosas em relação à contabilidade. Portugal talvez tenha uma cultura de responsabilidade menor; a Grécia não tem uma verdadeira cultura de contabilidade – nenhum partido, da esquerda à direita, quer que se “abram os livros”.

Há pouco falava da complexidade das instituições europeias. No sector bancário, o recém-criado mecanismo de supervisão, na alçada do BCE, pode ajudar a prevenir problemas?
Sou muito céptico em relação a isso. Não digo que sou contra, mas tenho algumas dúvidas. As instituições europeias passaram completamente ao lado dos problemas do BES. Com foi possível? Nos mercados financeiros, algumas pessoas saberiam o que se passava. Escrutinar o banco não era apenas uma responsabilidade portuguesa, era também europeia. Se calhar até era mais da Europa do que de Portugal… O banco faliu. E outros hão-de falir [na Europa]. Os testes de stress à banca foram uma decisão inteligente, mas ainda há zonas cinzentas. Se vivêssemos num mundo com mais transparência, talvez a nossa confiança nas instituições regressasse.

Não é garantido que não haja outros bancos “Espírito Santo” escondidos na Europa?
Ah, claro que não! Espero estar errado… É o meu feeling, basta ler sobre produtos financeiros, a recapitalização dos bancos... Vemos aqui as mesmas causas que estiveram na origem da crise de 2008 (e ainda não saímos dela). Não foi por acaso que o Banco Central Europeu fez os testes de stress a todos os bancos. Para quê? Para criar confiança. Mas vamos assistir à queda de outros bancos. O que podemos fazer contra isso? Não sei. Mas a primeira coisa é exigir uma regulação eficaz.

Mais do que o poder dos reguladores, há quem sublinhe o poder das firmas de auditoria dos bancos e empresas.
É preciso ver a questão de dois ângulos. Por um lado, as empresas de auditoria querem cumprir os seus contratos. Por outro, estão extremamente limitadas: podem fazer uma auditoria, mas a conclusão que apresentarem é tão limitada que não se vêem os riscos nas contas. Muitas vezes, as auditoras até podem querer ir mais longe, mas os bancos têm mais poder. Na maioria dos países, só há quatro grandes firmas de auditoria; na Austrália e na Nova Zelândia, há mais de cem – firmas mais pequenas num mercado competitivo e concorrencial. E é o que precisamos. Quais são os argumentos para não haver uma maior regulação das firmas de auditoria? Em vez de se preocuparem em promover um mercado aberto, com empresas que compitam entre si, [os governos e reguladores] vivem obcecados com a possibilidade de colapso das “quatro grandes”. É um mercado fechado.

O problema é maior do que pensamos?
As grandes auditoras e as armas que a maioria das firmas de contabilidade têm para escrutinar as empresas são claras e transparentes. No entanto, têm por vezes um relacionamento complicado com as empresas auditadas e, aí, as auditorias são mais complexas. Vivemos num tempo de medos, de fragilidade financeira. Não se pode imputar este vazio apenas aos governos. Se as pessoas não quiserem saber, os governos não se preocupam com isso.

Mas o que é que um cidadão comum pode fazer?
Exigir que se “abram os livros”, é o que nos diz a história. “Queremos ver os livros”. É esse o padrão que encontramos quando percorremos a história da contabilidade ao longo dos séculos. Qualquer pessoa tem de saber como manter os livros contabilísticos. Faz parte de uma cultura e de uma linguagem de transparência. Os cidadãos perderam esse hábito. Vocês fazem a vossa contabilidade regular? Este hábito cultural floresceu em locais como Florença e Veneza. Mesmo no século XVIII em Portugal o Marquês de Pombal procurou, de alguma forma, implementar a contabilidade. Os países com maior literacia financeira têm maior estabilidade ao longo do tempo.

Quando olha para o caso português, o que é que as autoridades – governo, reguladores, instituições – podem fazer para melhor a transparência nas contas públicas?
É uma questão difícil, porque se pensa sempre que um Governo vai fazer alguma coisa. Nunca coloquei a questão nesses termos. A sociedade precisa de partidos políticos que promovam a transparência e que realmente acreditem nela. A cultura de poder mudou. Em França, François Mitterrand nunca enriqueceu à conta da política. Usou o poder. Gostava do poder. Hoje, poder é dinheiro. Temos uma cultura de poder diferente. Encontramos na história países onde a literacia financeira teve o poder de reformar um país e tornar uma sociedade mais aberta. Portugal tem de se tornar num país com maior responsabilização financeira. Sou pró-Europa, acreditei no sonho europeu, acompanhei a construção europeia, mas as instituições europeias não respondem aos cidadãos. A Europa precisa de uma base democrática [suficiente] para conciliar países tão diferentes. Os portugueses não podem esperar que seja a Europa a resolver os seus problemas. Os países com a maior fluência financeira eram aqueles que tinham uma cultura de literacia maior: a Suíça dos séculos XVII e XVIII, a Holanda dos séculos XVIII e XIX, a Alemanha dos XIX. A educação produz literacia e a literacia leva à transparência. É sempre assim? Bem, a Rússia tem um determinado nível de alfabetização e zero de transparência…

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