Os portos são uma área estratégica que não devia ir para mãos estrangeiras

Quando Rodrigo Leite vendeu a Tertir à Mota-Engil disse ter tido a preocupação de não deixar cair o grupo em mãos internacionais. Não esperava, um dia, assistir à entrada dos turcos da Yildirim na empresa que fundou em 1981.

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Rodrigo Leite vendeu a Tertir em 2006 à Mota Engil que, na passada semana, a vendeu ao grupo turco Yildirim Fernando Veludo/NFactos

Trabalha ininterruptamente há 75 anos. O comendador Rodrigo Leite, fundador da Tertir, não sabe dizer se é vício ou outra coisa qualquer. Garante que “também não é religião”. “Não vou à missa”, diz. Mas não há dia nenhum, sábado e domingo incluídos, que não passe pelos escritórios da Tertir, no Freixieiro, em Matosinhos.

Mesmo depois de ter vendido o grupo à Mota-Engil, em 2006. Continua a ter para entregar a quem o contacta, pelo menos, três cartões-de-visita, de outras tantas empresas ou instituições em que assume responsabilidade. Um deles é, claro, da Tertir. Diz que só se quer manter ocupado. De tal forma que continua a investir em novos negócios. O último em que entrou foi no sector do calçado, depois de comprar a marca Paulo Brandão. É um negócio como outro qualquer, diz. “São sapatos, mas também podiam ser chuchas”, repete. Qual é o segredo? “Manter o pensamento ocupado. Sempre”.

PÚBLICO: Já tem 86 anos e continua a trabalhar. Tenciona reformar-se algum dia?
Rodrigo Leite: Durante 20 anos fui administrador no Lar do Comércio. Ali conheci várias pessoas do mundo dos reformados e conclui que os que tinham actividade para além da reforma sobreviviam. E os que não tinham sobreviviam mal. Apareciam doenças, todas as coisas e mais alguma. Entendi que não devia encarar a reforma como completa e, portanto, continuei a trabalhar, não obstante ter vendido o grupo que constituí, a Tertir, há já quase nove anos.

Um grupo que a Mota Engil (ME) já anunciou que vai vender ao grupo Yildirim, da Turquia.
Fui capaz de ter sido o último a saber, mas uma semana antes lá me explicaram que não tinham outra solução que não fosse vender. Disseram que o BES tinha comprado 37% [do capital] e agora queria vender. Que se calhar há problemas financeiros. Enfim. O que me parece – e isso já me tinha apercebido há mais tempo - é que eles estão completamente desinteressados da logística. O governo de Cabo Verde tem os portos todos em concessão. Desafiaram-me para tomar conta daquilo, mas eu disse que não, apesar de estar completamente livre para o fazer. Não avançaria sem falar com a Mota Engil. Foi aí que percebi que estava desinteressada e que já havia uns turcos ao barulho.

Quando vendeu a Tertir disse que tinha sido uma decisão solitária. Porquê? Não pediu conselhos a ninguém? Ou foi contra toda a gente?
A venda foi em 2006, eu já tinha uma idadezinha. Perguntei aos meus filhos se queriam assumir a empresa e lembrei que não era pêra fácil. Tínhamos já o compromisso para fazer um investimento avultado na Liscont, um projecto de expansão muito grande em Alcântara, de 150 milhões de euros. Eles tiveram medo. Pensei: vamos vender a minoria e continuar com isto. Mas ninguém aceitou. Tive várias propostas. Da Austrália, Hong Kong, Singapura. E algumas da Europa mas todos queriam maioria [do capital]. E eu pensei, se é maioria, então vendo tudo. Tinha como conselheiro o engenheiro Jorge Coelho – que já era conselheiro da Mota Engil e eu nem sabia – e começámos a fazer negócio. Cheguei a um número, aos 55 milhões de euros.

Menos de dez anos depois vendem de novo. Agora por 275 Milhões.
E no pacote vai tudo o que eu vendi mais algumas coisas. Vendi-lhes 48 empresas que eram tudo o que tinha em Portugal, em Angola, Moçambique e Guiné Bissau. Entretanto, a Mota Engil criou esta empresa, com o mesmíssimo nome do grupo que lhes vendi, e eu fiquei como vogal. Acordámos que durante cinco anos não podia mexer no sector. E eu nunca mais mexi. Recuso-me a mexer. Acabaram por confessar que estavam arrependidos por não terem aproveitado mais a minha experiência.

Estava disponível para isso?
Claro que sim! Sabe, a primeira coisa que fiz, depois da venda foi criar condições para ter um escritório meu. Queria continuar a trabalhar, fiquei com património imobiliário para gerir (tem actualmente um património de 15 milhões), com a [construtora] Somec, sou, inclusivamente, ainda administrador de algumas empresas que vendi à Mota Engil. Sou um homem de muitos tachos. Tenho o tal escritório todo montado, mesmo no centro de Matosinhos. Mas não me deixam ir para lá. O engenheiro António Mota diz-me que eu só saio daqui para o cemitério. E eu estou à espera que chegue o cemitério. Pagam-me para estar aqui e para não fazer nada. Nunca me consultaram para quase nada. E nestes anos todos, discutiu-se um par de coisas.

Por exemplo?
A aproximação à ferrovia. Quando foi para ser privatizada, eu opus-me, disse para porem os pés de fora. A CP Carga era um bluff, caríssimo, e na minha óptica não tem futuro. Até porque nos conceitos internacionais uma linha de caminho-de-ferro tem ter, pelo menos, 200 quilómetros para se tornar rentável. O que é que nós temos? Temos 200 km entre Porto e Lisboa, uma linha que está saturadíssima. Sempre disse que era preciso arranjar um bom parceiro espanhol. Cheguei a por a Transfesa (empresa espanhola, maior que a CP) no circuito. Trouxe os indivíduos para cá, fui com eles a Madrid. Fiz o possível para entrarem naquilo. Entraram os alemães, a Schencker, que comprou 51% da Transfesa. Deixou de ter interesse.

Era muito caro?
Não sei. O problema não seria esse. Desinteressaram-se do negócio.

No entanto, o sector portuário foi dos únicos que cresceu nestes longos anos de crise, com o aumento das exportações. Não estava tudo a correr bem? Porquê o desinteresse?
Tudo a correr bem, sim. É uma maravilha. Ganha-se o dinheiro que se quer neste sector e quando eu comecei ninguém acreditava naquilo. Cheguei a ter 90% da área portuária portuguesa. O que a Mota Engil me explicou é que a Autoridade da Concorrência estava a fazer barulho e que não tinham capacidade para alterar a sua hegemonia no sector. E por isso desistiam de tudo. Se é assim, eu tenho dúvidas. Mas as dúvidas são minhas, fico com elas.

Ficou triste?
Fiquei por uma simples razão. Acho que é uma área de interesse nacional, é estratégica. Quando vendi, fiz de tudo para manter a empresa cá. Dar isto ao estrangeiro, não sei. Não sei o que pode acontecer à Tertir.

Arrependeu-se? Teve vontade de a comprar outra vez?
Não. Pus muito da minha capacidade de empresário nisto. Custou-me muito fazê-la crescer, tomar a proporção que tomou. Foi uma fase da vida. Mas agora estou curado. Completamente curado. Posso meter-me noutros negócios, mas nunca na logística. Meti-me nos sapatos e comprei duas empresas, a marca Paulo Brandão e uma fabricante, a Versão Latina.

Como é que foi parar aos sapatos?
É curioso, porque o primeiro emprego que tive, aos 11 anos, foi na fábrica de calçado Atlas, que já não existe. Estive lá uns quatro meses. Depois entrei na actividade dos transportes e nunca mais saí. Os sapatos apareceram por coincidência. O sócio do Paulo Brandão, Nuno Pires, era filho de um grande conhecido meu. O Nuno queria comprar a parte do Paulo Brandão. Fizemos uma empresa, a RPNL, e comprámos 67%. Depois, acabou por comprar tudo. Já liquidei essa empresa e agora sou dono de dois pavilhões em Oliveira de Azeméis, que me custaram 400 mil euros cada um e tenho uma fábrica pequena, onde trabalham 25 pessoas a fazer 100 pares por dia. Mas a maquinaria que está instalada permite fazer 300 ou 400 pares por dia. Nunca pensei investir tanto como já investi.

Onde mais investiu?
Para além dos sapatos – sector onde investi quase um milhão de euros - tenho sobretudo investimentos imobiliários. A Rodrigo Leite tem um património avaliado em 15 milhões de euros. São andares para escritórios, terrenos e armazéns para alugar. A rentabilidade nunca é a exigível. Dá uns 5% ou 6 % e já é muito bom. E é uma garantia relativa. Ainda agora tinha instalações alugadas ao Pingo Doce e eles escrevem-me a dizer que se iam embora. E pronto, já foram.

Já resolveu os seus problemas todos com a CMVM?
Só há pouco tempo é que me livrei das multas, citações, etc. Recebi há duas semanas uma notificação do DIAP (Departamento de Investigação e Acção Penal) a dizer que estava ilibado de toda a responsabilidade. Só agora, ao fim de nove anos, é que posso dizer que estou livre. Paguei multas que nunca mais acabaram. Só de uma vez paguei 200 mil euros.

Relativas a quê? Ainda por causa da OPA que foi obrigado a lançar à sua própria empresa?
Por não ter feito as coisas devidamente. A OPA, o registo da OPA, as acções que tinha em off-shores, foi tudo uma confusão com a CMVM. E eu só comecei a ter problemas quando chegou  o Carlos Tavares, que até era muito meu amigo. Enfim, estava convencido que era sempre estrada… Mas agora, com tudo resolvido, reconheço que têm razão. Se não fosse a CMVM isto era um pagode, não tenho dúvidas. A verdade é que toda a gente tende a fugir. O BCP, o BES… toda a gente fugiu.

Esteve no processo de criação de um banco, o BPA. Como vê a actual situação da banca portuguesa?
Estes problemas todos surpreenderam-me em certa medida. Continuo muito receoso. Já não posso dizer que são instituições em que podemos confiar. Basta dizer que era grande accionista do BES e perdi tudo. Foi tudo parar ao banco mau e ninguém dá cavaco a ninguém. Desapareceu tudo. No BCP, foi aquela luta toda. Todos têm pés de barro. É um problema, mas não temos alternativa.

Como caracteriza a estratégia de Portugal em relação aos PALOPS?
Os PALOPS são países muito complicados. Mesmo que Portugal quisesse ter uma estratégia consolidada, é muito difícil. A Guiné, por exemplo, não tinha necessidade de ser pobre. Tem fosfato, tem bauxita (dá origem ao alumínio), tem uma área de pesca brutal (83 ilhas), uma área de rios e terreno fértil que lhes permitia produzir tudo. Mas não têm transportes. Exporta 300 mil toneladas de caju. O caju não precisa de nada, nasce espontaneamente e só esperar que caia. Exporta-se em cru. Vai para a India, onde o manipulam e põem em latinhas com sabor a tudo e a mais de alguma coisa… Na Guiné não se consegue fazer nada. É o Exército que manda.

Ainda tem interesses em África?
Tenho. Na Guiné tenho um terreno com três mil hectares de área agrícola, para fazer caju e cana. Tenho um estaleiro da Somec pelo qual já me ofereceram um milhão de euros. Tem casas lá dentro, forneço água duas vezes por dia ao bairro militar porque eles não têm água potável. Em Angola também ainda tenho terrenos, mas não me desfaço deles porque não posso trazer para cá o dinheiro.

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